É sempre tarde quando te olhas ao espelho.
Imagem densa, palpitante, ainda bem viva. Habitas a casa imensa, feita de
violinos mudos encostados uns aos outros. Todas as orientações espaciais são
exequíveis, todos os movimentos são possibilidade sonora. Partem-se os sons em
fragmentos dos dias, por entre horas de silêncio pousadas nas cinco linhas da
pauta que é a tua vida. No meio dessa melodia desafinada, está o teu corpo
sinuoso como um violino, ondeando numa bela canção. Mas não há quem a cante.
A Festa acabou. Nasceu outra vez o Menino
que sabemos que vai morrer. Para nos salvar, disseram-nos. Para sermos
perdoados de todos os males deste mundo. Mas quais são, afinal, os males deste
mundo? Porque estagnou a água da infância no deserto da vontade humana? Nascem
tantos meninos com o fim colado nesse princípio. Como apagar o precipício por
onde caem os que não têm nome nem rosto?
Olhas-te ao espelho e não reconheces a tua
imagem total. É muito tarde nas tuas novas rugas, cada vez mais profundas. Lês
nos sulcos negros as palavras de ordem dos recém-nascidos, as ladainhas de boas
vindas neste lugar que reservámos para todos eles: uns, deitados nos berços de
veludo e outros, enterrados a sete palmos de terra. Mas há uma alegria que
parece genuína no brilho das estrelas. Elas adormecem nos olhos pequeninos e tu
ficas presa a esse lugar de amor e esperança, o lago imaginário onde os peixes
dançavam à volta da menina que tu eras. A imagem da água é agora um grande
vazio da memória. De que serve chorar?
Sabemos que o Menino tem um duplo desígnio,
particular e universal. Mas vemos nascer as flores da morte no seu rosto, a
cada dia que passa: tu já sabes, foi por isso que ele nasceu. Para que o
destino de outros desafortunados meninos seja exactamente o mesmo, o do
sofrimento. Nos confins do mundo, longe dos jardins que plantamos na infância
perfeita e idealizada, que afinal não existe.
Amal Hussain, de sete anos de idade,
morreu de fome num hospital de um campo de refugiados, no meio da maior crise
humanitária do mundo actual, no Iémen. Estima-se que desde o início da guerra,
em 2015, morreram cerca de oitenta e cinco mil crianças, de fome, doença e
falta de cuidados. A sua imagem retrata um pequeno corpo consumido pela
injustiça. No rosto, belo como uma flor, a luz da esperança, ainda e sempre a
esperança. Um jardim onde ela previu que também nasceriam as flores da morte. É
impossível não me comover, é imperioso chorar por Amal. Pedir-lhe perdão por
tudo o que não conseguimos fazer para a salvar. Falo com a mulher que vejo no
espelho e vejo a criança que fui na infância de amor e felicidade. Vejo tudo
aquilo a que tive direito. Agradeço, por isso, a quem cuidou de mim, a quem me
amou. E vejo o infortúnio de Amal, que se tornou num símbolo da nossa vergonha:
mais do mesmo, o espanto de nos habituarmos a estas formas de vida.
O tempo também morre e atirámos foguetes à
noite para celebrar a tragédia da passagem de um ano inteiro em que não fizemos
nada que valesse a pena - cálices ao alto, vivas ao alto. Destinado ao tempo
novo, o esperado ano chegará sempre depois da meia noite, por incrível que
pareça, ano após ano em dezembro, o mês do nascimento do Menino Jesus, em
festas forçadas de ridícula abundância e desperdício, para esconder a nossa
falta de humanidade.
Cálices ao alto, vivas ao alto, injustiças
ao alto. Vemos e ignoramos. Afinal, tudo está no seu devido lugar. Bom Ano para
todos nós, se ainda formos capazes de alguma bondade.
Crónica de Adília César no Algarve Informativo Nº 185
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__185
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__185
Sem comentários:
Enviar um comentário