sábado, 19 de janeiro de 2019

UMA MÃO NO ESCURO


«A mais nobre paixão humana é aquela que ama a imagem da beleza
em vez da realidade material. O maior prazer está na contemplação.»
Leonardo da Vinci

O inverno caminha lento e denso. A cor misturada, indefinida como a visão de um pincel sujo que lamenta a impossibilidade de uma existência luminosa. A tela é nevoeiro, eclipse das palavras. Apetece dizer não, falar o silêncio que veio de longe, esse nada que parece a totalidade da matéria humana em desarmonia com a casa escura. Paredes engolidas pelo desconsolo, sem memória de uma teoria amena, sem esperança de um raio de sol. O sol, ênfase da lâmina de luz debruçada na muralha, a cair, a cair, a cravar-se no coração do retrato. O sol, essa impossibilidade.

Sinto o desequilíbrio do frio que vai cortando o ar em fatias, as feridas nas pontas dos dedos quando o tento agarrar. O imenso frio da injustiça descrita no posfácio. Um pequeno eco em voo subtil recai sobre a interioridade poética de tão rara beleza, e sorri nas mãos de Leonardo, como se fosse uma sucessão de ínfimos vazios metafóricos no esboço da obra-prima. Leonardo não sabe sorrir, nem acredita que um dia alguém escreverá um outro eco, o poema sombrio, predestinado a um amor impossível de alcançar no gesto espesso do pincel, na mesma tela. Apenas vislumbra o caudal escuro e inseguro, sem direito a apoteose. A narrativa da ausência é mais do que o silêncio, é a morte estampada no rosto, o sorriso do mestre congelado pelo ignóbil frio da ignorância estética. Salvar o retrato da tragédia da incompreensão, da excentricidade criativa, antes que o inverno acabe, antes que o sonho acorde.

Ele - Devo parar de pintar o enigma do teu sorriso. Tentar entender a escuridão que galopa nas minhas ideias, nas visões do futuro. Vê, sorrir a todo o custo é uma doença.
Ela - Não me custa sorrir para ti. O silêncio dos teus olhos é a minha cor preferida. Leonardo, és um poeta.
Ele - Não sentes que estamos aqui há muito tempo, há demasiado tempo?
Ela - Sim, os meus cabelos ficaram brancos. Mas não importa o tempo que passou. Estamos aqui, estaremos sempre no meu sorriso e nas tuas mãos. E o futuro é um segredo encerrado num cofre, a impedir a minha violenta fuga para a frente.
Ele - Não tenhas medo, serás eterna. Fica.
Ela - Não tenhas medo, eu iluminarei o teu escuro. Leva-me contigo.

E porque o que é dito tem que ser pintado, Leonardo pintou até esquecer o braço, até chegar a primavera. A morte de uma estação é o renascimento da seguinte, pelo que não há uma verdadeira tragédia: é apenas uma desesperada distância que se desvanece, um eco de vitória dos elementos da natureza sobre tudo o que é predominantemente humano. No jardim, o tempo das madressilvas perfumava a morte. E os sonhos de Leonardo, metáforas do seu pensamento, projectavam-se nas águas paradas do poço. Nem noite nem dia, apenas um futuro comprometido com o sorriso dela, num museu qualquer. Leonardo não sabe sorrir, não reconhece o seu semblante envelhecido no espelho de água. Ao cair, o tempo pára, o corpo em voo vertical pára, o pensamento pára. Ele sabe que já está morto porque sente o cheiro das madressilvas.


Olho o retrato há tanto tempo. Os meus cabelos ficaram brancos. Ela continua a sorrir, à espera de Leonardo. Por entre a multidão anónima que a cobiça num momento e logo de seguida a esquece, sinto o frio da solidão dele, que não consegue chegar a ela. Estão ambos presos na eternidade do passado que já não lhes pertence. A criança abre caminho por entre a multidão e detém-se em frente do retrato, encerrado na caixa de vidro blindado. O seu rosto, fresco como uma flor acabada de colher, é o espelho do outro rosto à prova de bala. A criança é pura, profundamente humana na sua interioridade, perfumada de vida. Sente o apelo da beleza, a ténue tristeza de um sorriso perdido no tempo, como se aquela imagem fosse uma boneca fora de moda, abandonada: ainda bela, mas sem utilidade.
- Como te chamas, senhora? Eu sou a Lisa!
A senhora continuou a sorrir.

E todos tivemos a percepção do milagre: elas eram a mesma pessoa, o mesmo sorriso, o mesmo nome, quando a espessura do tempo perdeu o seu contorno e as cores do retrato se tornaram mais claras e brilhantes. Leonardo compreendeu, finalmente, toda a sua inquietação criativa. Não era para deixar obra feita. Era para definir a substância peculiar de uma certa pureza espiritual, no sorriso de Mona Lisa, no sorriso daquela criança.

O teu nome, a essência da arte. A tua poderosa marca no nosso pobre e ignorante mundo.


Adília César
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