«A mais nobre paixão humana
é aquela que ama a imagem da beleza
em vez da realidade
material. O maior prazer está na contemplação.»
Leonardo da Vinci
O inverno caminha lento e denso. A cor
misturada, indefinida como a visão de um pincel sujo que lamenta a
impossibilidade de uma existência luminosa. A tela é nevoeiro, eclipse das
palavras. Apetece dizer não, falar o silêncio que veio de longe, esse nada que
parece a totalidade da matéria humana em desarmonia com a casa escura. Paredes
engolidas pelo desconsolo, sem memória de uma teoria amena, sem esperança de um
raio de sol. O sol, ênfase da lâmina de luz debruçada na muralha, a cair, a
cair, a cravar-se no coração do retrato. O sol, essa impossibilidade.
Sinto o desequilíbrio do frio que vai cortando
o ar em fatias, as feridas nas pontas dos dedos quando o tento agarrar. O
imenso frio da injustiça descrita no posfácio. Um pequeno eco em voo subtil recai
sobre a interioridade poética de tão rara beleza, e sorri nas mãos de Leonardo,
como se fosse uma sucessão de ínfimos vazios metafóricos no esboço da
obra-prima. Leonardo não sabe sorrir, nem acredita que um dia alguém escreverá
um outro eco, o poema sombrio, predestinado a um amor impossível de alcançar no
gesto espesso do pincel, na mesma tela. Apenas vislumbra o caudal escuro e
inseguro, sem direito a apoteose. A narrativa da ausência é mais do que o
silêncio, é a morte estampada no rosto, o sorriso do mestre congelado pelo ignóbil
frio da ignorância estética. Salvar o retrato da tragédia da incompreensão, da
excentricidade criativa, antes que o inverno acabe, antes que o sonho acorde.
Ele - Devo parar de pintar o enigma do teu
sorriso. Tentar entender a escuridão que galopa nas minhas ideias, nas visões
do futuro. Vê, sorrir a todo o custo é uma doença.
Ela - Não me custa sorrir para ti. O
silêncio dos teus olhos é a minha cor preferida. Leonardo, és um poeta.
Ele - Não sentes que estamos aqui há muito
tempo, há demasiado tempo?
Ela - Sim, os meus cabelos ficaram
brancos. Mas não importa o tempo que passou. Estamos aqui, estaremos sempre no
meu sorriso e nas tuas mãos. E o futuro é um segredo encerrado num cofre, a
impedir a minha violenta fuga para a frente.
Ele - Não tenhas medo, serás eterna. Fica.
Ela - Não tenhas medo, eu iluminarei o teu
escuro. Leva-me contigo.
E porque o que é dito tem que ser pintado,
Leonardo pintou até esquecer o braço, até chegar a primavera. A morte de uma
estação é o renascimento da seguinte, pelo que não há uma verdadeira tragédia:
é apenas uma desesperada distância que se desvanece, um eco de vitória dos
elementos da natureza sobre tudo o que é predominantemente humano. No jardim, o
tempo das madressilvas perfumava a morte. E os sonhos de Leonardo, metáforas do
seu pensamento, projectavam-se nas águas paradas do poço. Nem noite nem dia,
apenas um futuro comprometido com o sorriso dela, num museu qualquer. Leonardo
não sabe sorrir, não reconhece o seu semblante envelhecido no espelho de água.
Ao cair, o tempo pára, o corpo em voo vertical pára, o pensamento pára. Ele
sabe que já está morto porque sente o cheiro das madressilvas.
Olho o retrato há tanto tempo. Os meus
cabelos ficaram brancos. Ela continua a sorrir, à espera de Leonardo. Por entre
a multidão anónima que a cobiça num momento e logo de seguida a esquece, sinto
o frio da solidão dele, que não consegue chegar a ela. Estão ambos presos na
eternidade do passado que já não lhes pertence. A criança abre caminho por
entre a multidão e detém-se em frente do retrato, encerrado na caixa de vidro
blindado. O seu rosto, fresco como uma flor acabada de colher, é o espelho do
outro rosto à prova de bala. A criança é pura, profundamente humana na sua
interioridade, perfumada de vida. Sente o apelo da beleza, a ténue tristeza de
um sorriso perdido no tempo, como se aquela imagem fosse uma boneca fora de
moda, abandonada: ainda bela, mas sem utilidade.
- Como te chamas, senhora? Eu sou a Lisa!
A senhora continuou a sorrir.
E todos tivemos a percepção do milagre: elas
eram a mesma pessoa, o mesmo sorriso, o mesmo nome, quando a espessura do tempo
perdeu o seu contorno e as cores do retrato se tornaram mais claras e
brilhantes. Leonardo compreendeu, finalmente, toda a sua inquietação criativa.
Não era para deixar obra feita. Era para definir a substância peculiar de uma
certa pureza espiritual, no sorriso de Mona Lisa, no sorriso daquela criança.
O teu nome, a essência da arte. A tua
poderosa marca no nosso pobre e ignorante mundo.
Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__186?
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