E o papel da filosofia é,
precisamente, revelar aos homens
a utilidade do inútil ou, se assim
quisermos, ensiná-los a distinguir
entre um sentido e outro da palavra
«útil».
Pierre Hadot,
in Exercices Spirituels et Philosophie
Antique
Bianca Helen - 2017 |
No tempo em que agora vivemos parece haver o culto da obsessão por tudo aquilo que é útil, pela posse de bens materiais e de um certo padrão de beleza exterior atingida a qualquer custo. Ora, nesta ideia descritiva da sociedade moderna e modernizada está um perigo latente e imperceptível: a debilidade do espírito, da educação, da arte, da criatividade, bem como dos valores fundamentais como o amor e a verdade.
Para tornar a humanidade mais humana – e
esta deve ser uma ideia sempre presente nos processos de ser, estar e saber
fazer de qualquer pessoa – é necessário ter em consideração aquelas representações
absolutas e fundamentais para a educação do espírito e do desenvolvimento
cívico das sociedades existentes. Neste sentido, tudo o que possa contribuir
para a melhoria das pessoas enquanto seres humanos seria considerado útil – uma
tese difícil de sustentar, dada a natureza banal e não aprofundada dos veículos
de disseminação do conhecimento.
Na ordem do dia das grandes cimeiras da alta
finança ou das reuniões políticas parece estar um único ponto em discussão:
orçamentos de estado, causas e efeitos das despesas públicas e respectivos
pagamentos de dívidas, corte linear das despesas. Todas estas preocupações são
legítimas, mas a consequência directa e indirecta dos actos de economia
castradora é uma espiral de crimes éticos contra as disciplinas humanísticas e
as línguas clássicas, a instrução e a investigação universais, a arte e a
fantasia, o pensamento crítico e o livre arbítrio. Em suma, corremos o risco de
matar a memória do passado e de adquirirmos uma cegueira degenerativa e
progressiva em relação ao horizonte cívico do futuro que deveria inspirar toda
a acção humana.
Já Rousseau (1712-1778) constatara que os
«antigos políticos falavam sem descanso de costumes e virtudes; os nossos não
falam senão de comércio e de dinheiro». Em 2019, os discursos dos políticos não
serão também um “manifesto do útil”, no sentido de considerarem supérfluo tudo
o que não produza lucro financeiro? Também no dia a dia as atitudes dos
cidadãos não constituem obstáculo ao delírio da omnipotência do dinheiro e do
utilitarismo, ao contraírem empréstimos para adquirirem casas, carros, roupas,
telemóveis topo de gama, viagens… É certo que a culpa não é toda “nossa”, pois nas
últimas décadas temos vindo a ser instruídos num determinado universo do
utilitarismo ligado a uma cidadania do consumo, no sentido de nos tornarmos
exímios em termos de rapidez e obediência nas respostas dadas às seguintes
questões:
Um martelo vale mais do que uma escultura?
Uma esferográfica vale mais do que um
poema?
Uma trincha vale mais do que um quadro?
Uma tesoura vale mais do que uma sinfonia?
Um prédio de apartamentos vale mais do que
um monumento ou um museu?
É evidente que não há respostas “certas” e
“lineares”: conceptualizar e operacionalizar a utilidade do inútil dependerá de
inúmeros factores humanos, sociais e económicos, em permanente movimento e
evolução. O que nunca poderemos perder de vista neste tipo de argumentação é a
ética da responsabilidade que a todos nós pertence para salvarmos o que de mais
elevado podemos alcançar.
Nuccio Ordine, no seu manifesto “A
utilidade do inútil”, sugere que declinar as polémicas estéreis do debate entre
o peso e a medida dos saberes humanistas e dos saberes científicos é fundamental
para sublinhar a importância vital dos valores que não se podem pesar ou medir
com instrumentos afinados para avaliar a “quantitas” e não a “qualitas”.
E volto sempre à Poesia como motivação
intrínseca para a minha vida: «Ser artista – confessa Rainer Maria Rilke numa
passagem das “Cartas a um Jovem Poeta” – significa: não calcular nem contar;
amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante
durante as tempestades de Primavera, sem receio de que o Verão não possa vir
depois».
Que não nos verguemos à lógica da pressa e
do útil, é a ideia que vos deixo.
Adília César