sábado, 26 de janeiro de 2019

MANIFESTO DA INUTILIDADE


E o papel da filosofia é, precisamente, revelar aos homens
a utilidade do inútil ou, se assim quisermos, ensiná-los a distinguir
entre um sentido e outro da palavra «útil».

Pierre Hadot,
in Exercices Spirituels et Philosophie Antique

Bianca Helen - 2017

No tempo em que agora vivemos parece haver o culto da obsessão por tudo aquilo que é útil, pela posse de bens materiais e de um certo padrão de beleza exterior atingida a qualquer custo. Ora, nesta ideia descritiva da sociedade moderna e modernizada está um perigo latente e imperceptível: a debilidade do espírito, da educação, da arte, da criatividade, bem como dos valores fundamentais como o amor e a verdade.

Para tornar a humanidade mais humana – e esta deve ser uma ideia sempre presente nos processos de ser, estar e saber fazer de qualquer pessoa – é necessário ter em consideração aquelas representações absolutas e fundamentais para a educação do espírito e do desenvolvimento cívico das sociedades existentes. Neste sentido, tudo o que possa contribuir para a melhoria das pessoas enquanto seres humanos seria considerado útil – uma tese difícil de sustentar, dada a natureza banal e não aprofundada dos veículos de disseminação do conhecimento.

Na ordem do dia das grandes cimeiras da alta finança ou das reuniões políticas parece estar um único ponto em discussão: orçamentos de estado, causas e efeitos das despesas públicas e respectivos pagamentos de dívidas, corte linear das despesas. Todas estas preocupações são legítimas, mas a consequência directa e indirecta dos actos de economia castradora é uma espiral de crimes éticos contra as disciplinas humanísticas e as línguas clássicas, a instrução e a investigação universais, a arte e a fantasia, o pensamento crítico e o livre arbítrio. Em suma, corremos o risco de matar a memória do passado e de adquirirmos uma cegueira degenerativa e progressiva em relação ao horizonte cívico do futuro que deveria inspirar toda a acção humana.

Já Rousseau (1712-1778) constatara que os «antigos políticos falavam sem descanso de costumes e virtudes; os nossos não falam senão de comércio e de dinheiro». Em 2019, os discursos dos políticos não serão também um “manifesto do útil”, no sentido de considerarem supérfluo tudo o que não produza lucro financeiro? Também no dia a dia as atitudes dos cidadãos não constituem obstáculo ao delírio da omnipotência do dinheiro e do utilitarismo, ao contraírem empréstimos para adquirirem casas, carros, roupas, telemóveis topo de gama, viagens… É certo que a culpa não é toda “nossa”, pois nas últimas décadas temos vindo a ser instruídos num determinado universo do utilitarismo ligado a uma cidadania do consumo, no sentido de nos tornarmos exímios em termos de rapidez e obediência nas respostas dadas às seguintes questões:

Um martelo vale mais do que uma escultura?
Uma esferográfica vale mais do que um poema?
Uma trincha vale mais do que um quadro?
Uma tesoura vale mais do que uma sinfonia?
Um prédio de apartamentos vale mais do que um monumento ou um museu?

É evidente que não há respostas “certas” e “lineares”: conceptualizar e operacionalizar a utilidade do inútil dependerá de inúmeros factores humanos, sociais e económicos, em permanente movimento e evolução. O que nunca poderemos perder de vista neste tipo de argumentação é a ética da responsabilidade que a todos nós pertence para salvarmos o que de mais elevado podemos alcançar.


Nuccio Ordine, no seu manifesto “A utilidade do inútil”, sugere que declinar as polémicas estéreis do debate entre o peso e a medida dos saberes humanistas e dos saberes científicos é fundamental para sublinhar a importância vital dos valores que não se podem pesar ou medir com instrumentos afinados para avaliar a “quantitas” e não a “qualitas”.


E volto sempre à Poesia como motivação intrínseca para a minha vida: «Ser artista – confessa Rainer Maria Rilke numa passagem das “Cartas a um Jovem Poeta” – significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades de Primavera, sem receio de que o Verão não possa vir depois».

Que não nos verguemos à lógica da pressa e do útil, é a ideia que vos deixo.

Adília César

sábado, 19 de janeiro de 2019

UMA MÃO NO ESCURO


«A mais nobre paixão humana é aquela que ama a imagem da beleza
em vez da realidade material. O maior prazer está na contemplação.»
Leonardo da Vinci

O inverno caminha lento e denso. A cor misturada, indefinida como a visão de um pincel sujo que lamenta a impossibilidade de uma existência luminosa. A tela é nevoeiro, eclipse das palavras. Apetece dizer não, falar o silêncio que veio de longe, esse nada que parece a totalidade da matéria humana em desarmonia com a casa escura. Paredes engolidas pelo desconsolo, sem memória de uma teoria amena, sem esperança de um raio de sol. O sol, ênfase da lâmina de luz debruçada na muralha, a cair, a cair, a cravar-se no coração do retrato. O sol, essa impossibilidade.

Sinto o desequilíbrio do frio que vai cortando o ar em fatias, as feridas nas pontas dos dedos quando o tento agarrar. O imenso frio da injustiça descrita no posfácio. Um pequeno eco em voo subtil recai sobre a interioridade poética de tão rara beleza, e sorri nas mãos de Leonardo, como se fosse uma sucessão de ínfimos vazios metafóricos no esboço da obra-prima. Leonardo não sabe sorrir, nem acredita que um dia alguém escreverá um outro eco, o poema sombrio, predestinado a um amor impossível de alcançar no gesto espesso do pincel, na mesma tela. Apenas vislumbra o caudal escuro e inseguro, sem direito a apoteose. A narrativa da ausência é mais do que o silêncio, é a morte estampada no rosto, o sorriso do mestre congelado pelo ignóbil frio da ignorância estética. Salvar o retrato da tragédia da incompreensão, da excentricidade criativa, antes que o inverno acabe, antes que o sonho acorde.

Ele - Devo parar de pintar o enigma do teu sorriso. Tentar entender a escuridão que galopa nas minhas ideias, nas visões do futuro. Vê, sorrir a todo o custo é uma doença.
Ela - Não me custa sorrir para ti. O silêncio dos teus olhos é a minha cor preferida. Leonardo, és um poeta.
Ele - Não sentes que estamos aqui há muito tempo, há demasiado tempo?
Ela - Sim, os meus cabelos ficaram brancos. Mas não importa o tempo que passou. Estamos aqui, estaremos sempre no meu sorriso e nas tuas mãos. E o futuro é um segredo encerrado num cofre, a impedir a minha violenta fuga para a frente.
Ele - Não tenhas medo, serás eterna. Fica.
Ela - Não tenhas medo, eu iluminarei o teu escuro. Leva-me contigo.

E porque o que é dito tem que ser pintado, Leonardo pintou até esquecer o braço, até chegar a primavera. A morte de uma estação é o renascimento da seguinte, pelo que não há uma verdadeira tragédia: é apenas uma desesperada distância que se desvanece, um eco de vitória dos elementos da natureza sobre tudo o que é predominantemente humano. No jardim, o tempo das madressilvas perfumava a morte. E os sonhos de Leonardo, metáforas do seu pensamento, projectavam-se nas águas paradas do poço. Nem noite nem dia, apenas um futuro comprometido com o sorriso dela, num museu qualquer. Leonardo não sabe sorrir, não reconhece o seu semblante envelhecido no espelho de água. Ao cair, o tempo pára, o corpo em voo vertical pára, o pensamento pára. Ele sabe que já está morto porque sente o cheiro das madressilvas.


Olho o retrato há tanto tempo. Os meus cabelos ficaram brancos. Ela continua a sorrir, à espera de Leonardo. Por entre a multidão anónima que a cobiça num momento e logo de seguida a esquece, sinto o frio da solidão dele, que não consegue chegar a ela. Estão ambos presos na eternidade do passado que já não lhes pertence. A criança abre caminho por entre a multidão e detém-se em frente do retrato, encerrado na caixa de vidro blindado. O seu rosto, fresco como uma flor acabada de colher, é o espelho do outro rosto à prova de bala. A criança é pura, profundamente humana na sua interioridade, perfumada de vida. Sente o apelo da beleza, a ténue tristeza de um sorriso perdido no tempo, como se aquela imagem fosse uma boneca fora de moda, abandonada: ainda bela, mas sem utilidade.
- Como te chamas, senhora? Eu sou a Lisa!
A senhora continuou a sorrir.

E todos tivemos a percepção do milagre: elas eram a mesma pessoa, o mesmo sorriso, o mesmo nome, quando a espessura do tempo perdeu o seu contorno e as cores do retrato se tornaram mais claras e brilhantes. Leonardo compreendeu, finalmente, toda a sua inquietação criativa. Não era para deixar obra feita. Era para definir a substância peculiar de uma certa pureza espiritual, no sorriso de Mona Lisa, no sorriso daquela criança.

O teu nome, a essência da arte. A tua poderosa marca no nosso pobre e ignorante mundo.


Adília César
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__186?

sábado, 12 de janeiro de 2019

QUANDO NO ROSTO NASCEM FLORES

 É sempre tarde quando te olhas ao espelho. Imagem densa, palpitante, ainda bem viva. Habitas a casa imensa, feita de violinos mudos encostados uns aos outros. Todas as orientações espaciais são exequíveis, todos os movimentos são possibilidade sonora. Partem-se os sons em fragmentos dos dias, por entre horas de silêncio pousadas nas cinco linhas da pauta que é a tua vida. No meio dessa melodia desafinada, está o teu corpo sinuoso como um violino, ondeando numa bela canção. Mas não há quem a cante.

A Festa acabou. Nasceu outra vez o Menino que sabemos que vai morrer. Para nos salvar, disseram-nos. Para sermos perdoados de todos os males deste mundo. Mas quais são, afinal, os males deste mundo? Porque estagnou a água da infância no deserto da vontade humana? Nascem tantos meninos com o fim colado nesse princípio. Como apagar o precipício por onde caem os que não têm nome nem rosto?

Olhas-te ao espelho e não reconheces a tua imagem total. É muito tarde nas tuas novas rugas, cada vez mais profundas. Lês nos sulcos negros as palavras de ordem dos recém-nascidos, as ladainhas de boas vindas neste lugar que reservámos para todos eles: uns, deitados nos berços de veludo e outros, enterrados a sete palmos de terra. Mas há uma alegria que parece genuína no brilho das estrelas. Elas adormecem nos olhos pequeninos e tu ficas presa a esse lugar de amor e esperança, o lago imaginário onde os peixes dançavam à volta da menina que tu eras. A imagem da água é agora um grande vazio da memória. De que serve chorar?

Sabemos que o Menino tem um duplo desígnio, particular e universal. Mas vemos nascer as flores da morte no seu rosto, a cada dia que passa: tu já sabes, foi por isso que ele nasceu. Para que o destino de outros desafortunados meninos seja exactamente o mesmo, o do sofrimento. Nos confins do mundo, longe dos jardins que plantamos na infância perfeita e idealizada, que afinal não existe.

Amal Hussain, de sete anos de idade, morreu de fome num hospital de um campo de refugiados, no meio da maior crise humanitária do mundo actual, no Iémen. Estima-se que desde o início da guerra, em 2015, morreram cerca de oitenta e cinco mil crianças, de fome, doença e falta de cuidados. A sua imagem retrata um pequeno corpo consumido pela injustiça. No rosto, belo como uma flor, a luz da esperança, ainda e sempre a esperança. Um jardim onde ela previu que também nasceriam as flores da morte. É impossível não me comover, é imperioso chorar por Amal. Pedir-lhe perdão por tudo o que não conseguimos fazer para a salvar. Falo com a mulher que vejo no espelho e vejo a criança que fui na infância de amor e felicidade. Vejo tudo aquilo a que tive direito. Agradeço, por isso, a quem cuidou de mim, a quem me amou. E vejo o infortúnio de Amal, que se tornou num símbolo da nossa vergonha: mais do mesmo, o espanto de nos habituarmos a estas formas de vida.
Amal Hussain, 7 anos de idade
O tempo também morre e atirámos foguetes à noite para celebrar a tragédia da passagem de um ano inteiro em que não fizemos nada que valesse a pena - cálices ao alto, vivas ao alto. Destinado ao tempo novo, o esperado ano chegará sempre depois da meia noite, por incrível que pareça, ano após ano em dezembro, o mês do nascimento do Menino Jesus, em festas forçadas de ridícula abundância e desperdício, para esconder a nossa falta de humanidade.

Cálices ao alto, vivas ao alto, injustiças ao alto. Vemos e ignoramos. Afinal, tudo está no seu devido lugar. Bom Ano para todos nós, se ainda formos capazes de alguma bondade.

Crónica de Adília César no Algarve Informativo Nº 185
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__185

domingo, 6 de janeiro de 2019

ANO NOVO

Anuncia-se um Ano Novo: 2019 é agora o tempo para criar e desenvolver os nossos projectos de promoção da cultura: LÓGOS - Biblioteca do Tempo é o nosso contributo colectivo. Para Adília César e Fernando Esteves Pinto, na qualidade de coordenadores editoriais do projecto, e Adão Contreiras, enquanto assistente editorial, é tempo de reflexão e de planeamento.

Adília César e Fernando Esteves Pinto
Até à data, saíram 3 revistas: Setembro 2017 (Nº 1) | Abril 2018 (Nº 2) | Setembro 2018 (Nº 3). Divulgámos  literatura e ilustrações de autor. Entrevistámos diversas personalidades com relevo no panorama cultural. A receptividade do público leitor vai crescendo, lentamente, através de algumas evidências peculiares: por exemplo, sendo uma revista concebida no Algarve e que publica sempre autores e/ou ilustradores algarvios, a região parece dar pouco apoio ao projecto (salvo raras e importantes excepções, as quais têm contribuído para a aceitação da revista como projecto a ter em conta no panorama cultural do nosso país). Lamentamos, pois, que o Algarve ainda não tenha demonstrado a abertura necessária ao projecto LÓGOS - Biblioteca do Tempo, quer a nível de aquisição de exemplares por parte dos leitores, quer no apoio presencial aquando das apresentações públicas da revista, ou até mesmo nas redes sociais e imprensa regional. Assim, impõe-se um trabalho de divulgação mais eficaz na comunidade próxima através de diversos meios ao nosso alcance. Com uma tiragem inicial de 100 exemplares, e com possibilidade de reimpressão (o que já aconteceu), uma elevada percentagem de revistas segue para as zonas de Lisboa, Leiria e Porto, e também Madeira, Açores, Suiça e Canadá.




Em 2019, é nossa intenção disponibilizar aos leitores mais dois números da revista literária em suporte papel, com autores convidados e de acordo com um conceito idealizado por nós, sempre diferente de revista para revista, mantendo, de um modo geral, os diversos géneros literários já publicados anteriormente: poesia, ensaio, crítica literária, conto, peça de teatro, entrevista, ilustração. Deste modo, vamos dando a conhecer o que entendemos por arte literária e plástica (desenho e pintura), através dos autores que convidamos para colaborar.

A todos - colaboradores e leitores - deixamos registado o nosso agradecimento. Juntos, tornaremos possível a continuação deste projecto e chegaremos mais longe. Opiniões e críticas serão bem-vindas. Bom Ano!

BOAS FESTAS



LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)