sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018

O RISO DE RIMBAUD

«Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível.»
Arthur Rimbaud (1854-1891)


Sons. Que sons? Quem os ouve? Felizes os cegos, esses mestres dos sentidos avassaladores. Escolhi esta especialização, espécie de cegueira subjectiva e representação do mundo formada por imagens trazidas pelos sons e pelos odores, depois de desistir de visões das palavras poéticas. Poderosas sensações. Poderosos sons e odores que vêm de outros séculos menos amenos.

O riso sarcástico de Rimbaud apanhou-me desprevenida, como um golpe de vento que levanta a saia rodada. Que som. Fiquei confinada àquele lugar misterioso entre África e Europa. Estou convencida de que viajo há anos e que os meus companheiros de viagem são – por favor façam um esforço de imaginação – Rimbaud e Rimbaud. O Rimbaud da ida e o Rimbaud do regresso, os quais se encontram naquele lugar peculiar: um, com cerca de 20 anos, a procurar um renascimento aventureiro e infinito e o outro, com 36 anos, a aceitar o renascimento definitivo da morte. 

O comboio parou. É uma pequena Estação à margem do burburinho civilizado. O Chefe da Estação esteve ali toda a sua vida e além dos comboios e dos passageiros, que constituem o seu monótono fardo diário, tem uma paixão: o pequeno jardim.

Sinto o perfume das flores, uma colecção de odores perfeitamente ordenada: rosas ao centro, três filas em “u” de jasmim e bem ao fundo, junto ao pequeno muro onde se senta o Chefe da Estação enquanto come o seu pão quente com presunto fumado, grandes arbustos de damas-da-noite. O perfume intenso denuncia a ausência do sol e a noite tomba sobre o meu espírito.

O riso de Rimbaud ecoa no seu próprio riso, como uma metáfora. Qual é o Rimbaud que ri? O que desistiu de escrever por nada mais ter a dizer, porque se convenceu de que ninguém estaria interessado em ler a sua poesia, angustiado e revoltado contra a banalidade do meio literário francês? Ou seria o andarilho, comerciante de café, traficante de armas, mercador de escravos, doente canceroso à beira do precipício da morte? Que som.

O comboio partiu. Rimbaud era um especialista em partir, isso sabia eu. Aos 20 anos já ele tinha lido todos os livros da Biblioteca de Babel, que como se sabe é infinita, e ele partia, partia continuamente, como se o mundo que apenas conhecera dos livros o chamasse. E mesmo quando estava parado Rimbaud viajava para dentro de si próprio à procura da próxima partida pelos descaminhos de França, Inglaterra, Áustria, Alemanha, Itália, Suécia. Indonésia. Chipre. Etiópia. Como se desenhasse uma geografia da inquietação.

E depois o regresso. A vida e a morte a partir e a chegar, a dor, o último descaminho. Mas antes da última dor os seus pés eram como um tapete mágico, levando-o numa viagem linear e também alegórica. Molhava o rosto num ribeiro e ali estava a imensidão do oceano. Empurrava a pedra a custo até ao topo da montanha, o Parnaso, porque julgava ser um deus, porque acreditava que um dia poderia ter reunido em si toda a poesia e todos os poetas, mas era apenas Sísifo, condenado a repetir para sempre a mesma tarefa. Todas as viagens de Rimbaud eram um absurdo, uma preparação para o regresso, uma procura recorrente da compreensão da própria viagem. Nesse regresso, Rimbaud remeteu-se ao silêncio e ao exílio, contando com o seu engenho para tudo experimentar e de tudo desistir.

Eu era a sombra da morte. E era também nesta encruzilhada que eu vacilava qual Sísifo, à procura do riso de Rimbaud, aquele som, que som. À procura da poesia e de todos os poetas, sempre a viajar e também a regressar para compreender todas as minhas viagens. Para escrever silêncios, noites, anotar o inexprimível.

Não posso abdicar da minha cegueira subjectiva e persigo outros odores que não me satisfazem: café, pólvora, peixe seco, suor, dor e sangue. Quando o comboio pára, saio e regresso a pé. Caminho levemente sobre os passos do Poeta. À procura dos sons. Que sons? Quem os ouve? Pressinto esta realidade sonhada à medida que me aproximo do jardim onde o Chefe da Estação está sentado no pequeno muro, enquanto come o seu pão quente com presunto fumado. Tão nítida a fome, tão perfumada a noite, tão inexprimível o riso de Rimbaud.

Depois, o silêncio. Se a palavra não for iluminação, é urgente deixar a página em branco, é melhor manter os olhos fechados nas sombras.
Adília César

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