Quando se fala de literatura a arena enche-se de farpas e capotes,
cavalos e cavaleiros. O boi é crítico: investe no espectáculo e envia
quase todos para o matadouro. Mas há sempre alguém que lhe puxa pelo
rabo, derrapa duas voltas em sapatinhos de ballet e afasta-se em pose de
quem ganhou mais um prémio. Os aficionados aplaudem a obra taurina,
pedem bis e autógrafos, lançam elogios e bijutarias; o director da
corrida, esse editor bandarilheiro, sopra na corneta para mais uma
edição.
E a festa da literatura continua. Não é rija porque a
prosa é mole. Despidos do traje da vaidade intelectual, os escritores só
então percebem que as luzes do espectáculo têm a modéstia potência que
lhes assistem nas suas habilidades criativas. Antes, porém, não
compreendem que o silêncio, o deles, também pode ser um favor que se
presta à humanidade. Como não entendem que a humildade, se for genética,
é o melhor capítulo da vida deles.
Conheço escritores para todos
os gostos e desilusões: os que passam o tempo a palitar o pensamento em
busca da tal metáfora associada ao pastelinho de bacalhau; os que velam
pelas relíquias dos poetas mortos, angustiados que se sentem no arranjo
de uma palavra que lhes escapa para a composição dum verso mumificado;
os que mergulham na escrita com colete de salvação e bóia de sinalização
a avisar «cuidado aqui está um cérebro a meter água»; os que ofendem o
tempo dos seus leitores com charadas linguísticas e miniaturas
reflexivas: são personalidades obscurecidas pela interioridade luminosa
dos seus próprios pensamentos; pessoas afectadas: nem pavão nem
plumagem. Há também os suicidas simulados: escrevem pelo prazer mórbido
de identificarem aqueles que os acompanham no aborrecimento funesto dos
seus próximos livros.
Conheço os que amam as palavras e a
natureza. Porém, quando têm ideias, deixam-nas morrer de sede.
Dedicam-se ao comércio das influências. O gráfico das suas inspirações
fica sempre aquém daquilo que são capazes de escrever. Há os que
procuram conforto na sombra dos outros. São escritores magoados e
inseguros. Procuram o ombro alheio como almofada para a consciência
deles. Têm atitudes mínimas, tanto na vida como na escrita, e são
afectos a grandes enaltecimentos para proveito próprio. São uma espécie
de toupeira. E, claro, também são oportunistas.
Conheço os que
frequentam todos os salões de poesia e encontros literários. Têm
inclinação para a cultura fútil e sofrem de delírio pelas personalidades
bem instituídas. Devem-lhes em reconhecimento o que eles nunca
poderão pagar em obra criada. Normalmente têm um discurso de mercadores
(andam com os seus livros num saco), e as ideias expostas no papel têm a
caducidade dos produtos de necessidade duvidosa. São escritores que
dizem por fora o que não conseguem escrever por dentro. Uma questão de
interioridade.
Os mais curiosos e patéticos são os que procuram
salvação. Passatempo: morrer quantas vezes for necessário para se
convencerem de que ainda estão vivos. Ilusionistas do disparate.
Ressuscitam sempre quando ninguém dá conhecimento da existência deles.
Cadáveres convencidos.
E há os que se prestam à grata função
decorativa em sessões de homenagens e festas literárias. São flores para
tanto colorido. Em termos literários, são criativos na imbecilidade e
repetitivos na abordagem poética. Entre dois copos, croquetes em posição
de mastro e guardanapo desfraldado, nas tais festas giras com editores
marinheiros e críticos enjoados, os seus projectos navegam de vento em
pompa e circunstância. Na ressaca, as promessas da véspera encalham nos
cornos do esquecimento.
Só as flores prometem tanta beleza.
Este é um escritor original: amigo da literatura ao ponto de rejeitar a
escrita. Mantém-se fiel à angústia que herdou da sua cisma visionária. O
tempo é a sua musa. A preguiça a sua obra. Expõe-se nos labirintos da
ilusão. Tem a intuição da palavra, mas transformou-se num indivíduo
amaldiçoado pela arquitectura da frase.
E assim vai o romance e a poesia em cortejo de sacrifício; e embora seja pobre a boda, da festa ninguém desiste.
fep
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