Noémio Ramos |
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018
terça-feira, 27 de fevereiro de 2018
LÓGOS ENTREVISTA | JOSÉ ANTUNES RIBEIRO
José Antunes
Ribeiro, editor e livreiro da Espaço Ulmeiro, numa conversa com Adília César e
Fernando Esteves Pinto.
LÓGOS: O tempo, que tudo cria, também
destrói. O tempo da sua infância, em que já sentia o apelo dos livros e da
leitura. O tempo da sua juventude, em que os sonhos se materializaram em
projectos relevantes – foram tempos de uma vida dedicada à edição e à
literatura. Hoje, sente-se traído por este tempo em que vive?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: O tempo para além de ser
um grande escultor é também um grande inimigo. O sonho é a grande arma de qualquer
realização pessoal e colectiva. Quem vive uma já longa vida dedicada aos livros
e à literatura não pode nunca sentir-se traído pelo tempo. As coisas são o que
são. E por maior que seja a vontade, os ponteiros do relógio não andam
para trás. Desde que me recordo de mim, em especial a partir da
escola primária, os livros foram um fascínio e neles encontrei a razão de
vida. Mas não lamento nada. É claro que a distância desses tempos me obriga a
concluir que se recomeçasse faria algumas coisas de maneira diferente.
LÓGOS: Foi fundador da Editora Ulmeiro,
mas também passou pelas Edições Itaú e esteve na origem da Assírio & Alvim.
Como é que entrou no mundo da edição?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: O meu percurso começou na
Livraria Obelisco, da Amadora (Reboleira), em 1968, as Edições Itaú onde editei
esse fabuloso livrinho A CRIANÇA E A VIDA, da Maria Rosa Colaço e, entre outros,
o poster OS ESTATUTOS DO HOMEM, do Thiago de Mello. Em 1969 aparece a
Ulmeiro, e a Assírio & Alvim em 1972. Cheguei a trabalhar na propaganda
médica, mas já nessa altura colaborava com as livrarias e editoras que ajudei a
fundar, por isso sempre me considerei livreiro e editor.
LÓGOS: Tanto a Editora Ulmeiro
como a livraria eram espaços de resistência à censura no tempo do Estado Novo.
Como fazia chegar aos leitores o que se considerava na altura «livros
proibidos»? Há algum episódio que nos queira contar?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Vivi intensamente a
resistência contra a Censura e pela Liberdade de Expressão, tendo o meu nome em
vários Manifestos entre os quais o MANIFESTO dos 101 católicos contra a Guerra
Colonial em 1965, e o Manifesto Pela Liberdade de Expressão em
1972. Participei também no movimento das Cooperativas Culturais, tendo
sido Vice-Presidente da Direcção da VIS, na Amadora. Com o encerramento das
cooperativas culturais no consulado marcelista pareceu-me que era necessário
encontrar novas formas de resistência e de animação e agitação cultural. A
Ulmeiro aparece nesse contexto. Os chamados "livros proibidos" eram
fáceis de divulgar. Havia uma grande procura e a Ulmeiro era um alvo habitual
da PIDE não só na livraria, mas das nossas edições e no trabalho de
distribuição. Tenho histórias engraçadas como as apreensões de livros de
Lenine, Estaline e Racine, para não falar desse livro perigosíssimo com o
título de MANUAL DO BETÃO ARMADO! Uma vez a apreensão visou os posters do ITAÚ.
Um deles tinha a imagem de um casal de namorados e um poema de A CRIANÇA E A
VIDA: "O Amor é um pássaro azul/ num campo verde/ no alto da
madrugada". No próprio dia da apreensão deste poster o Pide voltou à
livraria ao fim da tarde e disse-me: "eu sei que ainda deve ter aquele
poster dos namorados, queria oferecê-lo à minha namorada".
LÓGOS: Também escreveu no
suplemento juvenil do Diário de Lisboa e colaborou na revista O tempo e o Modo.
É autor de vários livros de poesia. Está previsto a publicação do livro “Julião
e Outros Poemas” com uma tiragem de 150 exemplares assinados por si. Fale-nos
dessa experiência como autor.
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Colaborei no Juvenil do DIÁRIO
DE LISBOA, na revista O TEMPO E O MODO, no NOTÍCIAS DA AMADORA,
no COMÉRCIO DO FUNCHAL e em mais alguns jornais e revistas. Publiquei MAR
A MAR (1981); O DIFÍCIL COMÉRCIO DAS PALAVRAS, (1984); FRAGMENTO E ENIGMA
(1985); RIO DO ESQUECIMENTO (1993); TODOS OS LIVROS, DIZ ELE (1999); PALAVRAS
PARA FERNANDO PESSOA (2013). JULIÃO E OUTROS TEXTOS ainda não saiu, talvez
na próxima Primavera.
LÓGOS: O que pensa sobre os
grupos editoriais que integram na sua estrutura empresarial várias editoras, descaracterizando-as
e remetendo os editores para um plano secundário, isto é, transformando-o num
funcionário comum, sem a importância e o carisma de outros tempos em que os
critérios do editor eram uma garantia de qualidade e estavam mais próximos dos
autores?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Os grandes grupos editoriais e
livreiros (Porto Editora e Leya) funcionam como os eucaliptos na floresta,
secam tudo à sua volta. O risco é que nestas "auto-estradas" só
quase circulam os chamados best sellers
e obras que pouco inovam. Eu defendo o trabalho das livrarias e dos
editores independentes mas não esqueço que não existe a união necessária
desde logo para se poderem defender das margens leoninas que os grandes grupos
impõem. Também essa união possibilitaria a criação de mecanismos de
cooperação com vantagens para todos. Este vai ser mais um combate em que me vou empenhar.
LÓGOS: Que autores publicou na
Ulmeiro? E que livros lhe deram mais prazer editar?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Gostei muito de editar alguns
excelentes autores, destacando: Agostinho da Silva, António Ramos Rosa, Hélia
Correia, Fernando Dacosta, António Salvado, Léo Ferré, Maria Ondina Braga, José
Viale Moutinho, Alda Espírito Santo, Alberto Pimenta, Luís Veiga Leitão,
Lawrence Ferlinghetti, Raul de Carvalho, Lidia Martinez, António Ferra, Hugo
Beja, Miguel Barbosa, Noémia Seixas, Wanda Ramos, Abílio Teixeira Mendes, Maria
Graciete Besse, Álamo Oliveira, Orlando da Costa, Mário Contumélias, Pedro
Barroso, José Jorge Letria, Ascêncio de Freitas e tantos outros. Destaco
também as QUADRAS POPULARES, do Zeca Afonso, o METAMRFOSES DO VÍDEO do Alberto
Pimenta, todos os livros do Professor Agostinho da Silva, os livros
do António Ramos Rosa e o ÁLBUM DO LÉO FERRÉ, o MONTEDEMO da Hélia
Correia entre os que mais prazer me deram por ter o meu nome associado a estas
edições.
LÓGOS: A livraria Espaço
Ulmeiro, criada em 1969, foi ponto de encontro de alguns escritores. Como
recorda hoje esses tempos?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: A livraria Ulmeiro desde o seu
início em 1969 foi sempre um local de encontro. Foram inúmeras as sessões
culturais que aqui tiveram lugar com destaque para a presença em algumas
ocasiões do Zeca Afonso que fez memoráveis sessões de música; Carlos Paredes em
mais do que uma ocasião; o poeta Manuel Maria, da Galiza; Mário Viegas (provavelmente
um dos primeiros locais em Lisboa onde ele disse Poesia), Rogério Paulo,
Fernando Assis Pacheco; o Professor Agostinho da Silva, Dinis Machado,
Figueiredo Sobral, António Ferra, Lidia Martinez e tantos amigos. Entre os
inesquecíveis, Léo Ferré e Lawrence Ferlinghetti, Natália Correia, David Mourão
Ferreira, Urbano Tavares Rodrigues, António Lobo Antunes, Vitorino e Ruy
Belo...
LÓGOS: Foram os leitores que
deram o «golpe de misericórdia» a muitas livrarias que tiveram de fechar as
suas portas, como aconteceu com a Espaço Ulmeiro. Este fenómeno não estará
ligado aos maus hábitos de leitura das pessoas? A verdadeira literatura está
sempre a perder leitores?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: As livrarias fecham por falta de
leitores, sempre. Não há voltas a dar. Ainda estamos por cá vivendo e tentando
remar contra a corrente. É sabido que não é nada fácil. Mas os tempos são de
tempos de antena do futebol até à exaustão. Os índices de leitura são baixos.
Houve um colega que me disse uma vez: "estás enganado, a nossa luta não
deve ser para as pessoas lerem mais, mas sim para comprarem mais
livros". O meu colega não tem razão, mas o marketing tem muito peso e o
pessoal dos livros distraiu-se e deixou correr o marfim. Continuo a pensar
que as questões da leitura se resolvem desde cedo na escola primária de
preferência com bons hábitos de leitura, na existência de bibliotecas
desde as escolares às públicas e municipais com bibliotecários que
gostem de livros e de os ler, com uma rede de livrarias
independentes inserida nas comunidades, com os media a dedicarem nem que
seja apenas 3% do tempo que dedicam ao futebol.
LÓGOS: Qual é a sua opinião
sobre o panorama literário actual?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: Conheço mal o panorama literário
actual, vivo na periferia e não frequento o meio nem tenho vontade de o
frequentar. Vou lendo qualquer coisa mas é insuficiente. Haverá gente com
valor, claro! Quem sou eu para os criticar ou julgar. Sempre vivi um pouco na
margem e assim irei continuar.
LÓGOS: Recentemente criou uma
associação cultural. Em que consiste a dinâmica deste projecto?
JOSÉ ANTUNES RIBEIRO: A Espaço Ulmeiro Associação
Cultural está já a funcionar com os seguintes objectivos: "Promoção do livro
e da leitura. Espaços de exposições, compra e venda de livros. Edição e
distribuição de livros e revistas. Cooperação livreira e editorial com os
países de língua oficial portuguesa. Organização de feiras do livro e de
festivais literários e artísticos nos países de língua oficial portuguesa”.
Pretendemos chegar aos 300 associados em breve. A jóia é de 20,00€ e a quota
mensal de 5,00€. Os associados beneficiam de 20% de desconto em todas as nossas
realizações. Em breve sairá a público a revista O VOO DA CORUJA, dedicada à
literatura, às Artes e à Ciência. O Director será o poeta e artista plástico
Hugo Beja, também homem de ciência. O nº. Zero, que sairá nesta primavera, terá
uma tiragem pequena prevista de 250 exemplares, sendo 75 exemplares para
distribuir com um desenho original de Hugo Beja. A edição normal terá o preço
de 10,00€ e a edição especial com o desenho de Hugo Beja terá um custo de
30,00€. A E.U.A.C. é a nossa grande aposta neste momento.
segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018
A LITERATURA É UMA FESTA
Quando se fala de literatura a arena enche-se de farpas e capotes,
cavalos e cavaleiros. O boi é crítico: investe no espectáculo e envia
quase todos para o matadouro. Mas há sempre alguém que lhe puxa pelo
rabo, derrapa duas voltas em sapatinhos de ballet e afasta-se em pose de
quem ganhou mais um prémio. Os aficionados aplaudem a obra taurina,
pedem bis e autógrafos, lançam elogios e bijutarias; o director da
corrida, esse editor bandarilheiro, sopra na corneta para mais uma
edição.
E a festa da literatura continua. Não é rija porque a
prosa é mole. Despidos do traje da vaidade intelectual, os escritores só
então percebem que as luzes do espectáculo têm a modéstia potência que
lhes assistem nas suas habilidades criativas. Antes, porém, não
compreendem que o silêncio, o deles, também pode ser um favor que se
presta à humanidade. Como não entendem que a humildade, se for genética,
é o melhor capítulo da vida deles.
Conheço escritores para todos
os gostos e desilusões: os que passam o tempo a palitar o pensamento em
busca da tal metáfora associada ao pastelinho de bacalhau; os que velam
pelas relíquias dos poetas mortos, angustiados que se sentem no arranjo
de uma palavra que lhes escapa para a composição dum verso mumificado;
os que mergulham na escrita com colete de salvação e bóia de sinalização
a avisar «cuidado aqui está um cérebro a meter água»; os que ofendem o
tempo dos seus leitores com charadas linguísticas e miniaturas
reflexivas: são personalidades obscurecidas pela interioridade luminosa
dos seus próprios pensamentos; pessoas afectadas: nem pavão nem
plumagem. Há também os suicidas simulados: escrevem pelo prazer mórbido
de identificarem aqueles que os acompanham no aborrecimento funesto dos
seus próximos livros.
Conheço os que amam as palavras e a
natureza. Porém, quando têm ideias, deixam-nas morrer de sede.
Dedicam-se ao comércio das influências. O gráfico das suas inspirações
fica sempre aquém daquilo que são capazes de escrever. Há os que
procuram conforto na sombra dos outros. São escritores magoados e
inseguros. Procuram o ombro alheio como almofada para a consciência
deles. Têm atitudes mínimas, tanto na vida como na escrita, e são
afectos a grandes enaltecimentos para proveito próprio. São uma espécie
de toupeira. E, claro, também são oportunistas.
Conheço os que
frequentam todos os salões de poesia e encontros literários. Têm
inclinação para a cultura fútil e sofrem de delírio pelas personalidades
bem instituídas. Devem-lhes em reconhecimento o que eles nunca
poderão pagar em obra criada. Normalmente têm um discurso de mercadores
(andam com os seus livros num saco), e as ideias expostas no papel têm a
caducidade dos produtos de necessidade duvidosa. São escritores que
dizem por fora o que não conseguem escrever por dentro. Uma questão de
interioridade.
Os mais curiosos e patéticos são os que procuram
salvação. Passatempo: morrer quantas vezes for necessário para se
convencerem de que ainda estão vivos. Ilusionistas do disparate.
Ressuscitam sempre quando ninguém dá conhecimento da existência deles.
Cadáveres convencidos.
E há os que se prestam à grata função
decorativa em sessões de homenagens e festas literárias. São flores para
tanto colorido. Em termos literários, são criativos na imbecilidade e
repetitivos na abordagem poética. Entre dois copos, croquetes em posição
de mastro e guardanapo desfraldado, nas tais festas giras com editores
marinheiros e críticos enjoados, os seus projectos navegam de vento em
pompa e circunstância. Na ressaca, as promessas da véspera encalham nos
cornos do esquecimento.
Só as flores prometem tanta beleza.
Este é um escritor original: amigo da literatura ao ponto de rejeitar a
escrita. Mantém-se fiel à angústia que herdou da sua cisma visionária. O
tempo é a sua musa. A preguiça a sua obra. Expõe-se nos labirintos da
ilusão. Tem a intuição da palavra, mas transformou-se num indivíduo
amaldiçoado pela arquitectura da frase.
E assim vai o romance e a poesia em cortejo de sacrifício; e embora seja pobre a boda, da festa ninguém desiste.
fep
sexta-feira, 9 de fevereiro de 2018
O RISO DE RIMBAUD
«Eu escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível.»
Arthur Rimbaud (1854-1891)
Sons. Que sons? Quem os ouve?
Felizes os cegos, esses mestres dos sentidos avassaladores. Escolhi esta
especialização, espécie de cegueira subjectiva e representação do mundo formada
por imagens trazidas pelos sons e pelos odores, depois de desistir de visões
das palavras poéticas. Poderosas sensações. Poderosos sons e odores que vêm de
outros séculos menos amenos.
O riso sarcástico de Rimbaud
apanhou-me desprevenida, como um golpe de vento que levanta a saia rodada. Que
som. Fiquei confinada àquele lugar misterioso entre África e Europa. Estou
convencida de que viajo há anos e que os meus companheiros de viagem são – por
favor façam um esforço de imaginação – Rimbaud e Rimbaud. O Rimbaud da ida e o
Rimbaud do regresso, os quais se encontram naquele lugar peculiar: um, com cerca
de 20 anos, a procurar um renascimento aventureiro e infinito e o outro, com 36
anos, a aceitar o renascimento definitivo da morte.
O comboio parou. É uma pequena Estação à margem do burburinho civilizado. O Chefe da Estação esteve ali toda a sua vida e além dos comboios e dos passageiros, que constituem o seu monótono fardo diário, tem uma paixão: o pequeno jardim.
O comboio parou. É uma pequena Estação à margem do burburinho civilizado. O Chefe da Estação esteve ali toda a sua vida e além dos comboios e dos passageiros, que constituem o seu monótono fardo diário, tem uma paixão: o pequeno jardim.
Sinto o perfume das flores, uma
colecção de odores perfeitamente ordenada: rosas ao centro, três filas em “u”
de jasmim e bem ao fundo, junto ao pequeno muro onde se senta o Chefe da
Estação enquanto come o seu pão quente com presunto fumado, grandes arbustos de
damas-da-noite. O perfume intenso denuncia a ausência do sol e a noite tomba
sobre o meu espírito.
O riso de Rimbaud ecoa no seu
próprio riso, como uma metáfora. Qual é o Rimbaud que ri? O que desistiu de
escrever por nada mais ter a dizer, porque se convenceu de que ninguém estaria
interessado em ler a sua poesia, angustiado e revoltado contra a banalidade do
meio literário francês? Ou seria o andarilho, comerciante de café, traficante
de armas, mercador de escravos, doente canceroso à beira do precipício da
morte? Que som.
O comboio partiu. Rimbaud era um
especialista em partir, isso sabia eu. Aos 20 anos já ele tinha lido todos os
livros da Biblioteca de Babel, que como se sabe é infinita, e ele partia,
partia continuamente, como se o mundo que apenas conhecera dos livros o chamasse.
E mesmo quando estava parado Rimbaud viajava para dentro de si próprio à
procura da próxima partida pelos descaminhos de França, Inglaterra, Áustria,
Alemanha, Itália, Suécia. Indonésia. Chipre. Etiópia. Como se desenhasse uma
geografia da inquietação.
E depois o regresso. A vida e a
morte a partir e a chegar, a dor, o último descaminho. Mas antes da última dor
os seus pés eram como um tapete mágico, levando-o numa viagem linear e também alegórica.
Molhava o rosto num ribeiro e ali estava a imensidão do oceano. Empurrava a
pedra a custo até ao topo da montanha, o Parnaso, porque julgava ser um deus,
porque acreditava que um dia poderia ter reunido em si toda a poesia e todos os
poetas, mas era apenas Sísifo, condenado a repetir para sempre a mesma tarefa.
Todas as viagens de Rimbaud eram um absurdo, uma preparação para o regresso,
uma procura recorrente da compreensão da própria viagem. Nesse regresso, Rimbaud
remeteu-se ao silêncio e ao exílio, contando com o seu engenho para tudo
experimentar e de tudo desistir.
Eu era a sombra da morte. E era
também nesta encruzilhada que eu vacilava qual Sísifo, à procura do riso de
Rimbaud, aquele som, que som. À procura da poesia e de todos os poetas, sempre
a viajar e também a regressar para compreender todas as minhas viagens. Para
escrever silêncios, noites, anotar o inexprimível.
Não posso abdicar da minha
cegueira subjectiva e persigo outros odores que não me satisfazem: café,
pólvora, peixe seco, suor, dor e sangue. Quando o comboio pára, saio e regresso
a pé. Caminho levemente sobre os passos do Poeta. À procura dos sons. Que sons?
Quem os ouve? Pressinto esta realidade sonhada à medida que me aproximo do
jardim onde o Chefe da Estação está sentado no pequeno muro, enquanto come o
seu pão quente com presunto fumado. Tão nítida a fome, tão perfumada a noite,
tão inexprimível o riso de Rimbaud.
Depois, o silêncio. Se a palavra
não for iluminação, é urgente deixar a página em branco, é melhor manter os olhos
fechados nas sombras.
Adília César
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