sábado, 26 de junho de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [18] por Adília César

 

Durante toda a noite os fogos de artifício, os clamores alegres da cidade, o ruído dos escaleres, as músicas, encheram a baía de vida.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Satírico "Ostracom" em que o rato é servido por um gato,
Novo Império (1567-1085 aC), Museu Nacional do Cairo

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NA RUA,

os gatos e os ratos entretêm-se: brincam, correm, guincham. Curiosamente, são os gatos que correm atrás dos ratos. Não sei explicar porquê, uma vez que os perseguidos têm uma aparência bem mais assustadora do que os perseguidores; porque não é o processo revertido, pelo menos uma vez? Adiante. Meti na cabeça que só havia de escrever sobre a vida, mas a morte veio intrometer-se. Enquanto me demoro nesta visão doentia, deixo cair a caneta e não faço qualquer esforço para a apanhar. No chão, ela parece um risco do meu tédio, uma cicatriz à espera de cura.

 

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OS GATOS E OS RATOS

continuam no seu ludismo animalesco. Correm, guincham. Ali, não há inocentes. Creio que estão a brincar à sobrevivência do mais forte. Ainda não percebi qual é o mais forte, porque os gatos não conseguem apanhar os ratos e estes escondem-se em buracos pequeninos, ficam muito quietos até que os gatos se vão embora. Bem, de vez em quando um é apanhado… Os gatos e os ratos também ainda não perceberam que estão a lutar com os gatos e os ratos do futuro, os quais serão iguais aos do presente, ou seja, aos do passado. Quer dizer, através da acção-jogo de perseguição desenfreada provocam um comportamento de imitação dos mais novos. É uma circularidade na adaptação ao real do gato e do rato, enquanto divergências da fauna mamífera. Isto é genial, porque todos eles estão a viver o passado, o presente e o futuro, ao mesmo tempo. Um paradoxo da existência.

 

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A VIDA

pode ser uma falácia tendo em conta o conceito de “futuro”. O futuro já chegou, com muitos adjectivos de modo acoplados e uma fina película de suor nocturno que teima em permanecer agarrada ao pêlo, à pele. Os humanos também são animais, mas uns são mais parecidos com os gatos e outros com os ratos. O cheiro a morte instalou-se, não desaparece com facilidade, é uma coisa irremediavelmente caída no silêncio e ecoada na linha do tempo. Não se pode dizer adeus ao futuro, mas pode-se tomar novas decisões: o rato pode decidir ser gato e o gato pode decidir ser rato.

 

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JÁ SABES

que pergunta deves fazer: “o homem é um deus em ruínas” como sugeriu Ralph Waldo Emerson, ou o homem, sendo uma construção, está permanentemente em ruínas? Basta-se a ele próprio ou não? Sabes as perguntas, mas não sabes as respostas. Muito bem, vais no bom caminho. Não tenhas medo, os gatos e os ratos estão lá fora. Há festa na cidade, mas não te diz respeito. Há fogo de artifício para enganar os tolos e música ensurdecedora para que as palavras da mudança não se ouçam.

 

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TU OLHAS

a caneta caída no chão e sorris. Pensas que és um homem com a cabeça cheia de sábias convicções. Acreditas que vais escrever um poema para o futuro sem necessitar de profetas da luz ou da escuridão. Tolo. É noite, os ratos afogaram-se nas águas paradas e os gatos voltaram, sorrateiramente, para os colinhos fofos dos seus donos. É demasiado tarde, por hoje já não há nada a fazer. Afinal, uns correm mais depressa do que os outros por uma questão de vaidade, não de sobrevivência. O ego é um bicho perigoso, ainda que esteja enroscado, a ronronar, no ninho do seu inócuo hospedeiro.

 

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TU OLHAS

e tentas ler as informações relativas ao evento. Sorris. O cartaz é abominável, as cores dos caracteres parece que gritam, as poses dos intervenientes ficaram presas num erro de coreografia publicitária. Tudo é abominável: os acontecimentos e as suas intenções. O que é a vida? As respostas são filosofemas falhados como aqueles gatos que nunca voltam para casa.


Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_297

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [17] por Adília César

 

E nós, aqui, a escrevinharmos não sei que coisinhas minúsculas, que, apenas rabeiam um momento sobre o papel, são logo pó imperceptível!... – Você não tem vontade de se atirar a um poço? Eu tenho.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)


Blasphemous Enemies Concept Art - Juan Miguel López Barea



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ESTRANHO

nome para o meu poema magro e áspero, como se a luz amanhecesse desbotada, ausente de pontos cardeais ou de velocidades de ventos. Sem referencial, sigo a marcha do desnorte em câmara lenta, numa bobine antiga de um filme mudo de outra época, com imagens imperfeitas e holofotes sujos de insectos desviados do seu rumo. Estranho sentido para o meu poema, vazio e redundante, como se a luz desistisse dela própria e se transformasse em espiral de escuridão.

 

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UM REFERENCIAL

enganador, perdida que estou neste lugar intermédio, em vésperas de nada acontecer. Dizes que és idioma poético. Dizes que tens a verdade dentro de ti. Dizes que és um fazedor de milagres. Brilharias sempre assim nas manhãs indecisas? Ofuscarias humanos e anjos por entre instantes da loucura? Luz, um referencial de alegria para o meu poema sombrio. Uma teoria de tudo. Funde-se o verso nessa intensidade.


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MAS

não existem zonas lúcidas quando o mel escorre em vão. O que é visto nunca nos deixa do outro lado deste pequeno mundo cheio de chapéus pretos sem cabeças dentro. Nas ruas rolam cabeças improváveis, acamadas no mel que dá a volta ao mundo, todas iguais e inúteis, sem pensamentos por dentro. Os chapéus pretos de tamanhos diferentes parecem dominar a paisagem ainda dourada e quente, em veneração ao deus sol, e riem. Oh… como riem. De quê?... Afinal, há uma única verdade, decadente e sem qualquer espécie de humor: aquilo que existe afinal não existe; não há mundos feitos de chapéus pretos; tudo o que vês é a descrição de um caos definitivo, uma gélida planície de cabeças a rolar nas ruínas das ruas desertas. Debaixo dos meus pés, em triunfo, a impermanência da vida.

 

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QUERIA

não ter medo. Um poema é sempre demente, ainda que calado em murmúrio traiçoeiro. Sustenho a respiração do poema e ele cai em câmara muito lenta. É certo que não há forças de gravidade no plano irracional, mas quando cai o poema parte-se devagar e eu parto-me com ele. Por vezes, conserto o poema com a baba da minha demência e ele aceita o curativo. Entende a sua própria resignação como vitória das palavras humedecidas, mas não: é apenas um episódio surreal, um triste e anónimo poema colado com cuspo.

 

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EU,

cada vez mais partida e não consigo consertar-me. O que se afoga é o que ninguém lê. O que se fragmenta é a compreensão avulsa da literatura. Das palavras apenas se deviam erguer as dúvidas, nunca as respostas. Que interessam as certezas se não souberes que pergunta deves fazer? E regresso à profundidade de tudo o que ainda não tem luz: o poço da indiferença.


Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_295

 

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [16] por Adília César


Por isso preferiu permanecer calado – tendo por consolação entrever «o norte para que se inclina a divina bússola do espírito humano».

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

Salvador Dalí, Figura Cubista, 1925

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COMO NOS OLHA

este olhar parado, esta íris de nudez clandestina, o véu que desoculta a vida a entontecer. A vida… é um turbilhão e nós rodopiamos na periferia, na ânsia de chegar ao epicentro. Dança menina dança na tua saia redonda. Que cintilava olhos de ser coisa viva. E nós ficaremos aqui a olhar. A vida.

 

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VER

a luz e a sombra. As esquinas, os cantos, a verticalidade do teu espírito. É um espectáculo com morte por dentro, porque toda a coisa viva está, inevitavelmente, quase a morrer. Assim, devagar, como restolho ao sol. Mas este é o teu momento presente e esta é a nossa expectativa de acumulação, uns em cima dos outros, em forma de pirâmide. Se conseguires trepar por cima dos nossos corpos, a cúpula cimeira será o trono dos teus momentos futuros. Tenta. Vais ver que vale a pena.

 

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SENTIR

uma emoção emendada à última hora. O cão rosna com afinco e sente o teu medo. Fecha os olhos. Ouve o zumbido do calor na parede do aquário onde te refrescas. À tua volta, a multidão corre desenfreada e não sai do mesmo sítio. É um caracol monstruoso de múltiplos rumores. Repara, amanhã tudo isto estará apagado, silencioso. Sentirás então a perspectiva de um anúncio verdadeiro, a sensação de morte nesse peso que carregas nos ombros. Respira. Ainda não é a morte: é apenas o teu coração atulhado de mentiras, é a tua cabeça enroscada em tantos rostos falsos.

 

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O NORTE

pode ser uma imagem disruptiva que orienta o teu espírito. Afinal, a tua mente é caótica. Sangras os teus desconcertos diários e a ordem melódica não te agrada. Rompes com as normas impostas e procuras outro rumo; o Sul, talvez. Tentas, tentas, mas a espiral que te aprisionou quando ainda eras uma criança não te liberta. O que resta é uma imagem no horizonte que se altera a cada instante e que tu não consegues agarrar.

 

 Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_293

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