Eça de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Satírico "Ostracom" em que o rato é servido por um gato,
Novo Império (1567-1085 aC), Museu Nacional do Cairo
*
NA
RUA,
os
gatos e os ratos entretêm-se: brincam, correm, guincham.
Curiosamente, são os gatos que correm atrás dos ratos. Não sei explicar porquê,
uma vez que os perseguidos têm uma aparência bem mais assustadora do que os perseguidores;
porque não é o processo revertido, pelo menos uma vez? Adiante. Meti na cabeça
que só havia de escrever sobre a vida, mas a morte veio intrometer-se. Enquanto
me demoro nesta visão doentia, deixo cair a caneta e não faço qualquer esforço
para a apanhar. No chão, ela parece um risco do meu tédio, uma cicatriz à
espera de cura.
*
OS
GATOS E OS RATOS
continuam
no seu ludismo animalesco. Correm, guincham. Ali, não há inocentes. Creio que
estão a brincar à sobrevivência do mais forte. Ainda não percebi qual é o mais
forte, porque os gatos não conseguem apanhar os ratos e estes escondem-se em
buracos pequeninos, ficam muito quietos até que os gatos se vão embora. Bem, de
vez em quando um é apanhado… Os gatos e os ratos também ainda não perceberam
que estão a lutar com os gatos e os ratos do futuro, os quais serão iguais aos
do presente, ou seja, aos do passado. Quer dizer, através da acção-jogo de
perseguição desenfreada provocam um comportamento de imitação dos mais novos. É
uma circularidade na adaptação ao real do gato e do rato, enquanto divergências
da fauna mamífera. Isto é genial, porque todos eles estão a viver o passado, o
presente e o futuro, ao mesmo tempo. Um paradoxo da existência.
*
A
VIDA
pode
ser uma falácia tendo em conta o conceito de “futuro”. O futuro já chegou, com
muitos adjectivos de modo acoplados e uma fina película de suor nocturno que
teima em permanecer agarrada ao pêlo, à pele. Os humanos também são animais,
mas uns são mais parecidos com os gatos e outros com os ratos. O cheiro a morte
instalou-se, não desaparece com facilidade, é uma coisa irremediavelmente caída
no silêncio e ecoada na linha do tempo. Não se pode dizer adeus ao futuro, mas
pode-se tomar novas decisões: o rato pode decidir ser gato e o gato pode
decidir ser rato.
*
JÁ
SABES
que
pergunta deves fazer: “o homem é um deus em ruínas” como sugeriu Ralph Waldo Emerson, ou o homem, sendo uma construção,
está permanentemente em ruínas? Basta-se a ele próprio ou não? Sabes as
perguntas, mas não sabes as respostas. Muito bem, vais no bom caminho. Não
tenhas medo, os gatos e os ratos estão lá fora. Há festa na cidade, mas não te
diz respeito. Há fogo de artifício para enganar os tolos e música ensurdecedora
para que as palavras da mudança não se ouçam.
*
TU OLHAS
a caneta caída no chão e sorris. Pensas que
és um homem com a cabeça cheia de sábias convicções. Acreditas que vais
escrever um poema para o futuro sem necessitar de profetas da luz ou da
escuridão. Tolo. É noite, os ratos afogaram-se nas águas paradas e os gatos
voltaram, sorrateiramente, para os colinhos fofos dos seus donos. É demasiado
tarde, por hoje já não há nada a fazer. Afinal, uns correm mais depressa do que
os outros por uma questão de vaidade, não de sobrevivência. O ego é um bicho
perigoso, ainda que esteja enroscado, a ronronar, no ninho do seu inócuo
hospedeiro.
*
TU OLHAS
e tentas ler as informações relativas ao
evento. Sorris. O cartaz é abominável, as cores dos caracteres parece que
gritam, as poses dos intervenientes ficaram presas num erro de coreografia
publicitária. Tudo é abominável: os acontecimentos e as suas intenções. O que é
a vida? As respostas são filosofemas falhados como aqueles gatos que nunca
voltam para casa.
Adília César,
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo_297