sábado, 11 de julho de 2020

O FUTURO É HOJE


Reinventarmos juntos o mundo que compartilhamos.

António Guterres, 25-06-2020


A frase de António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, é um desejo simbólico e universal que vem de um passado remoto, desde que os primeiros povos deram voz às suas reivindicações por um mundo melhor, mais justo e, em pleno século XXI, também mais sustentável.


Giacomo Balla, pintor futurista (1871-1958)

Estamos todos de acordo que a ambição desmedida e arrogante dos humanos tem implicado uma relação injusta, catastrófica e quase unilateral com os recursos naturais. A Natureza tem sido a nossa escrava e poderá ser, em última instância, a nossa perdição. A evolução científica, médica, industrial e bélica assenta numa lógica superlativa e consumista: mais, melhor, vertiginosa. Já estamos a pagar caro pelos nossos sonhos exacerbados de progresso inglório, há muito tempo.

Juntos, habitamos um planeta maravilhoso, esta dádiva redonda de ser azul e verde. Conquistámos territórios, fechámos fronteiras e inventámos a Pátria, com idioma e bandeira. Mas não ficámos por aqui.
Construímos casas e pontes, canalizámos água potável, acendemos lâmpadas, curámos doenças. Mas não ficámos por aqui.
Fomos à lua, lançámos bombas atómicas, clonámos seres vivos. Mas não ficámos por aqui.
Assinámos tratados, abrimos fronteiras, acolhemos refugiados. Mas não ficámos por aqui.
E o que parece nunca deixar de existir é a constante assimetria dos povos de todo o mundo no acesso a direitos fundamentais de sobrevivência da própria espécie: os ricos e os pobres, o desperdício global de recursos e a fome de tudo, o aumento do desemprego e a incapacidade de nos protegermos uns aos outros. A saúde, a educação, a cultura e a sustentabilidade do planeta e de todos os seus habitantes continuam em risco.

Várias pandemias já se abateram sobre o mundo. A Covid-19 é a última, é mais uma. Que aprendemos com as pandemias que acreditámos terem sido vencidas? Quase nada, porque temos ânsia de voltar a sentir essa “doença da normalidade” a que nos habituámos; não vemos que o mundo está em permanente mudança e que tudo o que acontece de bom ou de mau serve para nos dar pistas para salvarmos o futuro. Não é possível continuar a cometer os mesmos erros numa tentativa vã de voltarmos a ter a vida que antes vivíamos, porque isso seria um processo de recriação dos sistemas que fizeram piorar todas as crises. As consequências negativas estão à vista, mesmo que todos os dias nos digam, politicamente, que “a situação está controlada”.

O futuro é hoje, porque o amanhã ainda não existe. É hoje que temos de orquestrar as mudanças necessárias e deixá-las como legado de uma vida digna para os nossos filhos e netos. Viver com a máscara cirúrgica colocada sobre a máscara facial da fatalidade é um desconforto menor comparado com a crise ambiental e económica à escala global. Esta última grande crise, por ser planetária, é tão infecciosa como o novo coronavírus que não distingue nem homens, mulheres ou crianças, nem novos ou velhos, nem ricos ou pobres, nem bons ou maus, e desenfreadamente se abate sobre qualquer um. O vírus invisível e poderoso é a criatura mais justa que existe porque através dos seus dons perniciosos de infecção, doença, morte e consequentes desequilíbrios na vida em sociedade, veio mostrar-nos uma verdade límpida como a água da nascente: afinal, somos todos iguais nos direitos a usufruir e nos deveres a cumprir; somos todos capazes de uma maior justiça na relação com os outros, na esperança, na solidariedade para com os mais vulneráveis. É na sustentabilidade, na inclusão e na igualdade que as “novas” políticas têm que assentar para salvaguardar a Vida nas suas variadas vertentes sociais, económicas, culturais, espirituais: em suma, a Justiça para Todos.

O futuro é hoje, porque amanhã já não estaremos aqui. Enquanto arquitectos da vida sabemos que “nenhuma árvore ou pedra arrancada à natureza nos é restituída” (Siza Vieira) e que qualquer mal que causemos mata uma parcela da nossa humanidade. E se o tempo pandémico durar muito, esse é precisamente o tempo que precisamos para nos empenharmos na construção de um mundo diferente, salvando apenas o que ainda vale a pena. Do pensamento à acção, somos todos responsáveis.

Adília César

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