Reinventarmos juntos o mundo que compartilhamos.
António Guterres, 25-06-2020
A frase de António Guterres,
secretário-geral das Nações Unidas, é um desejo simbólico e universal que vem
de um passado remoto, desde que os primeiros povos deram voz às suas
reivindicações por um mundo melhor, mais justo e, em pleno século XXI, também
mais sustentável.
Giacomo Balla, pintor futurista (1871-1958) |
Estamos todos de acordo que a ambição
desmedida e arrogante dos humanos tem implicado uma relação injusta,
catastrófica e quase unilateral com os recursos naturais. A Natureza tem sido a
nossa escrava e poderá ser, em última instância, a nossa perdição. A evolução
científica, médica, industrial e bélica assenta numa lógica superlativa e
consumista: mais, melhor, vertiginosa. Já estamos a pagar caro pelos nossos
sonhos exacerbados de progresso inglório, há muito tempo.
Juntos, habitamos um planeta maravilhoso,
esta dádiva redonda de ser azul e verde. Conquistámos territórios, fechámos
fronteiras e inventámos a Pátria, com idioma e bandeira. Mas não ficámos por
aqui.
Construímos casas e pontes, canalizámos
água potável, acendemos lâmpadas, curámos doenças. Mas não ficámos por aqui.
Fomos à lua, lançámos bombas atómicas,
clonámos seres vivos. Mas não ficámos por aqui.
Assinámos tratados, abrimos fronteiras,
acolhemos refugiados. Mas não ficámos por aqui.
E o que parece nunca deixar de existir é a
constante assimetria dos povos de todo o mundo no acesso a direitos
fundamentais de sobrevivência da própria espécie: os ricos e os pobres, o
desperdício global de recursos e a fome de tudo, o aumento do desemprego e a
incapacidade de nos protegermos uns aos outros. A saúde, a educação, a cultura
e a sustentabilidade do planeta e de todos os seus habitantes continuam em
risco.
Várias pandemias já se abateram sobre o
mundo. A Covid-19 é a última, é mais uma. Que aprendemos com as pandemias que
acreditámos terem sido vencidas? Quase nada, porque temos ânsia de voltar a sentir
essa “doença da normalidade” a que nos habituámos; não vemos que o mundo está
em permanente mudança e que tudo o que acontece de bom ou de mau serve para nos
dar pistas para salvarmos o futuro. Não é possível continuar a cometer os
mesmos erros numa tentativa vã de voltarmos a ter a vida que antes vivíamos,
porque isso seria um processo de recriação dos sistemas que fizeram piorar
todas as crises. As consequências negativas estão à vista, mesmo que todos os
dias nos digam, politicamente, que “a situação está controlada”.
O futuro é hoje, porque o amanhã ainda não
existe. É hoje que temos de orquestrar as mudanças necessárias e deixá-las como
legado de uma vida digna para os nossos filhos e netos. Viver com a máscara
cirúrgica colocada sobre a máscara facial da fatalidade é um desconforto menor
comparado com a crise ambiental e económica à escala global. Esta última grande
crise, por ser planetária, é tão infecciosa como o novo coronavírus que não
distingue nem homens, mulheres ou crianças, nem novos ou velhos, nem ricos ou
pobres, nem bons ou maus, e desenfreadamente se abate sobre qualquer um. O
vírus invisível e poderoso é a criatura mais justa que existe porque
através dos seus dons perniciosos de infecção, doença, morte e consequentes desequilíbrios
na vida em sociedade, veio mostrar-nos uma verdade límpida como a água da
nascente: afinal, somos todos iguais nos direitos a usufruir e nos deveres a
cumprir; somos todos capazes de uma maior justiça na relação com os outros, na esperança,
na solidariedade para com os mais vulneráveis. É na sustentabilidade, na
inclusão e na igualdade que as “novas” políticas têm que assentar para salvaguardar
a Vida nas suas variadas vertentes sociais, económicas, culturais, espirituais:
em suma, a Justiça para Todos.
O futuro é hoje, porque amanhã já não
estaremos aqui. Enquanto arquitectos da vida sabemos que “nenhuma árvore ou
pedra arrancada à natureza nos é restituída” (Siza Vieira) e que qualquer mal
que causemos mata uma parcela da nossa humanidade. E se o tempo pandémico durar
muito, esse é precisamente o tempo que precisamos para nos empenharmos na
construção de um mundo diferente, salvando apenas o que ainda vale a pena. Do
pensamento à acção, somos todos responsáveis.
Adília César
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