domingo, 26 de julho de 2020

E TODAVIA, UM METRO É UM METRO!


 De modo que a vida/ É um circo de feras/
E os entretantos/ São as minhas esperas.

Xutos & Pontapés




A educação e a aprendizagem estão sempre em evolução, de acordo com as transformações operadas nas sociedades. Há muitas décadas que os docentes esperam que esse processo evolutivo preencha as necessidades do público-alvo: os alunos e suas famílias. Queremos a promoção do sucesso educativo das crianças e jovens, queremos um país em que o exercício da cidadania activa contrarie a ignorância passiva. E o que quer o Ministério da Educação?

Nunca um futuro ano lectivo foi tão planeado, questionado, badalado. Todos têm opinião, os que estão dentro e os que estão fora da escola, pois, implícita ou explicitamente, com ela se relacionam. A Escola, essa instituição organizadora das sociedades é, ao mesmo tempo, um retrato fiel do nosso valor humano. Entre outros assuntos, muito se tem falado e escrito na distância de segurança anti-pandemia em recinto escolar. Na sua maior parte, os eventos televisivos e despachos governamentais a esse respeito mais parecem sketches humorísticos de fraca qualidade, embora eu preconize que, ainda assim, possam ficar na história da educação como pontos nevrálgicos de uma nova tese matemática – a distância correspondente a um metro-padrão é a distância “possível” correspondente a um metro-padrão. Esta tese, de tão amplo o seu espectro, veio permitir a introdução do corolário “se possível”, uma vez que, medindo-se o metro-padrão clássico ao longo de 100 centímetros clássicos, aquele poderá ser encolhido e esticado de acordo com a possibilidade dos intervenientes na sua relação com os espaços. Ou seja, a sala de aula com 45 ou 50 metros quadrados albergará turmas de 20 a 30 alunos e respectivos professores, todos à distância possível de um metro (que já não é o metro-padrão, é o pseudo-metro-na-medida-do-possível).

Quer dizer, há o metro-padrão anterior à era pandémica e há um outro metro-padrão mais flexível, correspondente à era pandémica propriamente dita. Vejamos algumas pérolas do discurso oficial (Orientações-DGESTE_DGE_DGS-20_21):
(…) I – Medidas Gerais
d) Procurar garantir as condições necessárias para cumprir com as recomendações do distanciamento físico;
II – Organização do Espaço – Educação Pré-Escolar
3. Deve ser maximizado o distanciamento físico entre as crianças quando estão em mesas, sem comprometer o normal funcionamento das atividades pedagógicas.
III – Práticas Pedagógicas – Educação Pré-Escolar
3. Pese embora a recomendação de distanciamento físico, importa não perder de vista a importância das aprendizagens e do desenvolvimento das crianças e a garantia do seu direito de brincar.
IV – Organização Escolar – Ensinos Básico e Secundário
4. c) Sempre que possível, deve garantir-se um distanciamento físico entre os alunos e alunos/docentes de, pelo menos, 1 metro, sem comprometer o normal funcionamento das atividades letivas.
7. Definir e identificar circuitos e procedimentos no interior da escola, que promovam o distanciamento físico, nomeadamente no percurso desde a entrada da escola até à sala de aula e nos acessos aos locais de atendimento e convívio.
8. Evitar a concentração de alunos nos espaços comuns da escola.
V – Código de Conduta
Além do uso da máscara dentro dos recintos escolares, devem ser mantidas as regras de higienização das mãos e etiqueta respiratória, promovendo-se ainda, a maximização do distanciamento físico. (…)

Das orientações depreende-se que o distanciamento físico possível depende da realidade física das salas de aula, ou seja: em salas de maior área e com menor número de alunos, 1 metro é o metro-padrão; em salas com menor área e com maior número de alunos, 1 metro é outra medida qualquer, como por exemplo, meio-metro. É muito curiosa a flexibilização do conceito de distância de segurança anti-pandemia: no início da dita, era de 2 metros; há uns meses, passou a 1metro e 50 centímetros; depois, encolheu para 1 metro; e presentemente, é o metro-possível, ou seja, todos encostadinhos uns aos outros. Caso ainda fossemos, malogradamente, assolados por algumas dúvidas, as declarações do Ministro da Educação Tiago Brandão Rodrigues vieram esclarecer o distanciamento físico correspondente a 1 metro:
- (…) e, obviamente, também o distanciamento, que ficou muito claro que sempre que possível deve ser de um metro e sempre que possível deve ser o mais maximizado possível.
- (…) Os alunos vão caber todos na mesma sala. Não haverá desdobramento de turmas.

O que o Ministro da Educação ainda não percebeu é que o metro-possível vai operacionalizar-se nuns míseros 11 centímetros! Sabemos este dado de fonte segura porque temos estado dentro das salas de aula com os nossos alunos! A inevitabilidade de voltar ao jardim-de-infância e à escola em setembro, tendo em conta as compreensíveis urgências pedagógicas, sociais e económicas, é uma impossibilidade possível, de acordo com as orientações da tutela, uma vez que vai ocorrer um aumento de casos de infecção por Covid-19 devido a um erro primário de planeamento: manter o número de crianças/alunos por grupo/turma em vez de o reduzir. E é a partir deste erro oficial que todas as estruturas intermédias e comunidades educativas tem de trabalhar com vista à organização do próximo ano lectivo, numa tentativa hercúlea de minimização dos estragos que se hão-de fazer sentir e que serão, no processo e no produto, uma responsabilidade colectiva. A saúde pública vai estar na corda bamba e cabe à escola, e principalmente aos educadores/professores de cada grupo/turma, um papel muito ingrato, uma vez que cada um destes docentes é responsável por gerir todas as regras de controlo de infecção, num espaço saturado de crianças/alunos.  Está errado, sabemos que está errado, mas vamos todos obedecer. Afinal, tudo mudou para tudo ficar na mesma. O que querem a DGESTE, a DGE e o ME com a premissa sempre que possível que mais parece quase sempre impossível? Querem que os docentes desenvolvam as suas actividades/aulas e protejam toda a comunidade escolar com as condições de trabalho que as escolas (não) oferecem, responsabilizando-se injustamente pelos fracassos que não podem controlar? Quantos “entretantos” são necessários para a chefia corrigir erros irreversíveis? Sim, a vida é um circo de feras, mas mansas. Ah, que vontade de dar xutos e pontapés nisto tudo.

Adília César


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