E os entretantos/ São as minhas esperas.
Xutos
& Pontapés
A educação e a aprendizagem estão sempre
em evolução, de acordo com as transformações operadas nas sociedades. Há muitas
décadas que os docentes esperam que esse processo evolutivo preencha as
necessidades do público-alvo: os alunos e suas famílias. Queremos a promoção do
sucesso educativo das crianças e jovens, queremos um país em que o exercício da
cidadania activa contrarie a ignorância passiva. E o que quer o Ministério da
Educação?
Nunca um futuro ano lectivo foi tão planeado,
questionado, badalado. Todos têm opinião, os que estão dentro e os que estão
fora da escola, pois, implícita ou explicitamente, com ela se relacionam. A Escola,
essa instituição organizadora das sociedades é, ao mesmo tempo, um retrato fiel
do nosso valor humano. Entre outros assuntos, muito se tem falado e escrito na distância
de segurança anti-pandemia em recinto escolar. Na sua maior parte, os
eventos televisivos e despachos governamentais a esse respeito mais parecem
sketches humorísticos de fraca qualidade, embora eu preconize que, ainda assim,
possam ficar na história da educação como pontos nevrálgicos de uma nova tese
matemática – a distância correspondente a um metro-padrão é a distância “possível”
correspondente a um metro-padrão. Esta tese, de tão amplo o seu espectro,
veio permitir a introdução do corolário “se possível”, uma vez que, medindo-se
o metro-padrão clássico ao longo de 100 centímetros clássicos, aquele poderá
ser encolhido e esticado de acordo com a possibilidade dos intervenientes na
sua relação com os espaços. Ou seja, a sala de aula com 45 ou 50 metros
quadrados albergará turmas de 20 a 30 alunos e respectivos professores, todos à
distância possível de um metro (que já não é o metro-padrão, é o pseudo-metro-na-medida-do-possível).
Quer dizer, há o metro-padrão anterior à
era pandémica e há um outro metro-padrão mais flexível, correspondente à era
pandémica propriamente dita. Vejamos algumas pérolas do discurso oficial
(Orientações-DGESTE_DGE_DGS-20_21):
(…) I – Medidas Gerais
d) Procurar garantir as condições
necessárias para cumprir com as recomendações do distanciamento físico;
II – Organização do Espaço – Educação
Pré-Escolar
3. Deve ser maximizado o distanciamento
físico entre as crianças quando estão em mesas, sem comprometer o normal
funcionamento das atividades pedagógicas.
III – Práticas Pedagógicas – Educação
Pré-Escolar
3. Pese embora a recomendação de
distanciamento físico, importa não perder de vista a importância das
aprendizagens e do desenvolvimento das crianças e a garantia do seu direito de
brincar.
IV – Organização Escolar – Ensinos Básico
e Secundário
4. c) Sempre que possível, deve
garantir-se um distanciamento físico entre os alunos e alunos/docentes de, pelo
menos, 1 metro, sem comprometer o normal funcionamento das atividades letivas.
7. Definir e identificar circuitos e
procedimentos no interior da escola, que promovam o distanciamento físico,
nomeadamente no percurso desde a entrada da escola até à sala de aula e nos
acessos aos locais de atendimento e convívio.
8. Evitar a concentração de alunos nos
espaços comuns da escola.
V – Código de Conduta
Além do uso da máscara dentro dos recintos
escolares, devem ser mantidas as regras de higienização das mãos e etiqueta
respiratória, promovendo-se ainda, a maximização do distanciamento físico. (…)
Das orientações depreende-se que o distanciamento
físico possível depende da realidade física das salas de aula, ou seja: em
salas de maior área e com menor número de alunos, 1 metro é o metro-padrão; em
salas com menor área e com maior número de alunos, 1 metro é outra medida
qualquer, como por exemplo, meio-metro. É muito curiosa a flexibilização do
conceito de distância de segurança anti-pandemia: no início da dita, era
de 2 metros; há uns meses, passou a 1metro e 50 centímetros;
depois, encolheu para 1 metro; e presentemente, é o metro-possível,
ou seja, todos encostadinhos uns aos outros. Caso ainda fossemos, malogradamente,
assolados por algumas dúvidas, as declarações do Ministro da Educação Tiago
Brandão Rodrigues vieram esclarecer o distanciamento físico correspondente a 1
metro:
- (…) e, obviamente, também o
distanciamento, que ficou muito claro que sempre que possível deve ser de um
metro e sempre que possível deve ser o mais maximizado possível.
- (…) Os alunos vão caber todos na mesma
sala. Não haverá desdobramento de turmas.
O que o Ministro da Educação ainda não
percebeu é que o metro-possível vai operacionalizar-se nuns míseros 11
centímetros! Sabemos este dado de fonte segura porque temos estado dentro
das salas de aula com os nossos alunos! A inevitabilidade de voltar ao jardim-de-infância
e à escola em setembro, tendo em conta as compreensíveis urgências pedagógicas,
sociais e económicas, é uma impossibilidade possível, de acordo com as
orientações da tutela, uma vez que vai ocorrer um aumento de casos de infecção
por Covid-19 devido a um erro primário de planeamento: manter o número de
crianças/alunos por grupo/turma em vez de o reduzir. E é a partir deste erro
oficial que todas as estruturas intermédias e comunidades educativas tem de
trabalhar com vista à organização do próximo ano lectivo, numa tentativa
hercúlea de minimização dos estragos que se hão-de fazer sentir e que serão, no
processo e no produto, uma responsabilidade colectiva. A saúde pública vai
estar na corda bamba e cabe à escola, e principalmente aos
educadores/professores de cada grupo/turma, um papel muito ingrato, uma vez que
cada um destes docentes é responsável por gerir todas as regras de controlo de
infecção, num espaço saturado de crianças/alunos. Está errado, sabemos que está errado, mas
vamos todos obedecer. Afinal, tudo mudou para tudo ficar na mesma. O que querem
a DGESTE, a DGE e o ME com a premissa sempre que possível que mais
parece quase sempre impossível? Querem que os docentes desenvolvam as
suas actividades/aulas e protejam toda a comunidade escolar com as condições de
trabalho que as escolas (não) oferecem, responsabilizando-se injustamente pelos
fracassos que não podem controlar? Quantos “entretantos” são necessários para a
chefia corrigir erros irreversíveis? Sim, a vida é um circo de feras, mas
mansas. Ah, que vontade de dar xutos e pontapés nisto tudo.
Adília César
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