SÍFISO
Recomeça…
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.
E nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…
Miguel Torga*, in Diário XIII, s/d
Pode
a Poesia ser uma forma de ver o mundo? De que mundo estamos a falar? “Há mais Mundos”, já o
dizia José Régio no seu livro de contos; há muitos mundos – um por cada ser
humano – que por sua vez se compartimentam noutros, de acordo com as percepções
face ao real e ao imaginário. O meu lugar-mundo é permeável e sensível aos
sonhos e às tragédias de todos os mundos – os meus e os dos outros. Sou a
sonhadora racional que se quer conhecer através de todas as possibilidades até
ao limite do impossível, questionando o seu contributo em relação ao próximo,
inventando novas formas de intervenção através do poema. A Poesia dá a conhecer
o mundo do poeta que escreve e se dá a ler, numa perspectiva de punição
existencial na procura do seu lado mais negro. A punição, o castigo e o alívio
andam de mãos dadas e recriam o mundo, acordando outros mundos em nós e
mostrando que não estamos sós nos momentos difíceis. A Poesia é mais uma forma
de questionamento que poderá resultar em epifania. E aí, sim, alcançamos algum
conhecimento do mundo que nos rodeia e novas maneiras de intervir.
O mundo que nos rodeia é, na actualidade, um ambiente pandémico,
escuro, confinado. Ou seja, voltado para dentro apesar da exacerbada utilização
das redes e plataformas virtuais que vieram substituir as relações humanas
presenciais. A peste amedronta e traumatiza, mas não paralisa. Hoje, tal como
noutras épocas pandémicas, a humanidade sabe que os indivíduos são capazes de
transformar a sociedade cultural, económica e ética, apesar de se focarem numa
“celebração do presente”, como já o disse Bruna Vargas. Existe um apelo
inequívoco à produção artística como uma tentativa de racionalizar o trauma
perpetrado pela intensidade emocional deste momento trágico que agora vivemos.
Em cada dia que acorda connosco, o mundo é pandémico e a arte também, enquanto
expressão viva das vicissitudes. Em cada dia, a primeira manhã do tempo é a
primeira manhã deste mundo novo, talvez admirável pela forma criativa como
experimentamos novas formas de vida e novos modos de sobrevivência. Somos actores
e espectadores numa peça de teatro sempre improvisada, com a coragem de actuar,
em presença, até ao fim.
O poema Sífiso de Miguel Torga é um hino melancólico à
vida, um apoio espiritual e estético nesta demanda diária e global pejada de
inconstâncias. A vida enquanto nascimento, experiência e morte é uma
condenação, uma aventura de constantes recomeços. Se o mundo é uma armadilha
ampla que ameaça de modo tão concreto e doentio a nossa sobrevivência, como
podemos encará-lo de frente? Tal como o rei Sífiso, carregando o rochedo até ao
alto da colina, no Inferno, durante toda a eternidade, apesar do rochedo rolar
encosta abaixo sempre que estivesse prestes a chegar ao cume? Ou como seres
detentores do nosso destino, ainda que por vezes infernal, usufruindo das
sucessivas oportunidades que a vida oferece, em busca de realização pessoal e
solidária para com os que mais precisam?
A Arte e muito concretamente, a Poesia, enquanto expressão de
liberdade criativa, podem trazer lucidez ao caos humano, à insanidade da besta.
O poema não é uma simples imagem dos acontecimentos, mas também um mapa de
prospecção da nossa própria humanidade. O poema apela à consciência e à moral,
ao traço distintivo da nossa espécie: temos plena consciência da nossa loucura.
E mesmo que nos sintamos infelizes, temos também a satisfação intrínseca de nos
sabermos livres e saudavelmente loucos.
Adília César
*Miguel Torga [S. Martinho de Anta/Vila Real,
1907 - Coimbra, 1995]
Nome literário do médico Adolfo Rocha. Poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista e contista. Cultivou a escrita autobiográfica num extenso "Diário" (escrito entre 1932 e 1994) e em "A Criação do Mundo". Além de poeta, é também conhecido pelos contos, muito estudados no ensino. Foi o primeiro autor lusófono a receber o Prémio Camões, em 1989.
Nome literário do médico Adolfo Rocha. Poeta, ensaísta, dramaturgo, romancista e contista. Cultivou a escrita autobiográfica num extenso "Diário" (escrito entre 1932 e 1994) e em "A Criação do Mundo". Além de poeta, é também conhecido pelos contos, muito estudados no ensino. Foi o primeiro autor lusófono a receber o Prémio Camões, em 1989.