sábado, 4 de abril de 2020

OS TÍTULOS PROVISÓRIOS


O que se pede à cena é apenas o delírio de uma coisa exacta.
Herberto Helder




Hoje fiquei em casa, como de costume. E ontem. E amanhã. O que se levanta é a lentidão de um gesto, na janela agora aberta, pela necessidade de fazer alguma coisa. A matéria reveladora do desalento dá significado ao medo de dormir e de acordar. Ergo uma muralha em redor dos acontecimentos fatais que ouço a toda a hora nas notícias. Esse é o retrato do mundo real, tal como nunca o tinha conhecido, um quase-tempo, um quase-lugar. E o tempo, com a duração esticada até aos limites do impossível, parece não ter movimento, é o cúmulo da inércia. As ruas, as nuvens, as pessoas, um vazio intolerável e desumano, de tão nublado sobre os telhados de vento e martírio. Quero sair para fora de qualquer coisa que me atraiçoa, mas fiquei em casa, como de costume. Iluminei-me com uma certa luz interior.

Amanhã é um outro dia que não vai chegar, pelo menos para alguns. Na verdade, “não vamos ficar todos bem”. Pelo menos, não da forma como conhecíamos os dias, concretos, palpáveis - esquemas organizadores do tempo de cada um. Por agora, permanecemos na fronteira do desconhecido, entre paredes e objectos tão familiares. O idioma das águas está a ser inventado naquele preciso instante do início da chuva, do princípio de tudo; parece ser sempre a primeira vez, de cada vez que acontece alguma coisa: o estrondo do trovão, o riso da criança, o ronco do automóvel pela manhã. Borboletas imaginárias nas experiências de espanto.

Estamos fechados em casa, em permanente delírio: quantos mortos?

Se tudo o que existe no mundo começou com um não, o arrepio é a sensação mais pura que Deus inventou, para dar a possibilidade aos humanos de contradizerem as tragédias. A Sua Mão a cair sobre as nossas cabeças, desde sempre. Depois, a cena desenrola-se na nossa consciência, como uma passadeira vermelha de vaidades, crimes, boçalidades e absolvições. O arrepio continua a ser a resposta visceral à propagação de todos os vírus, literais e metafóricos: a música que nos inebria, o poema que nos fascina, a imagem que nos choca, a mazela que nos apavora, a atitude altruísta que nos comove. E se para muitos Deus não é para aqui chamado, manter o arrepio como sensação de vida parece-me razoável, prodigioso até. Afinal, ainda estamos vivos.

Permaneço escondida em casa e espero um caudal de milagres. Não me atrevo a pedir ajuda, porque não compreendo o que está a acontecer. E enquanto a cidade exibe janelas fechadas e ruas vazias, espero não ser vista pelo dragão. Acredito que essa perturbação interior e submissa só pode ser captada com a lente especial do movimento das horas, que ainda não foi inventada, apesar de toda a tecnologia patente no meu smartphone. É um relógio que anda ao contrário, em direcção ao passado, aquele tempo familiar em que o mundo todo nos pertencia. Agora, o espírito soterrado comanda a vida numa absoluta concentração.

Um ponto, uma linha de luz, contemplação introspectiva e difusa da estrela longínqua que guardo nas mãos e pretendo devolver ao firmamento: esmola que dá tempo e mais tempo, movendo-se por entre os dedos, caindo sobre a minha cabeça de aflição luminescente. Tu abres os olhos ao brilho: foste visto quando apenas querias ser ouvido. A mão de Deus curvada sobre a humanidade, essa espiral de antagonismos: quantos mortos? O mundo, tal como o conhecíamos, chegou ao fim. Amanhã é um outro dia diferente. Resta-te, pois, esperar, tal como todos nós. Mas, andando sobre o andamento do tempo, pareces estar parado.

Lá fora, os pássaros cantam porque sabem que a primavera já chegou.


Adília César

https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__242

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