O que se pede à cena é apenas o
delírio de uma coisa exacta.
Herberto Helder
Hoje fiquei
em casa, como de costume. E ontem. E amanhã. O que se levanta é a lentidão de
um gesto, na janela agora aberta, pela necessidade de fazer alguma coisa. A
matéria reveladora do desalento dá significado ao medo de dormir e de acordar.
Ergo uma muralha em redor dos acontecimentos fatais que ouço a toda a hora nas
notícias. Esse é o retrato do mundo real, tal como nunca o tinha conhecido, um quase-tempo, um quase-lugar. E o tempo, com a
duração esticada até aos limites do impossível, parece não ter movimento, é o
cúmulo da inércia. As ruas, as nuvens, as pessoas, um vazio intolerável e
desumano, de tão nublado sobre os telhados de vento e martírio. Quero sair para
fora de qualquer coisa que me atraiçoa, mas fiquei em casa, como de costume.
Iluminei-me com uma certa luz interior.
Amanhã é um outro dia que não vai chegar,
pelo menos para alguns. Na verdade, “não vamos ficar todos bem”. Pelo menos,
não da forma como conhecíamos os dias, concretos, palpáveis - esquemas
organizadores do tempo de cada um. Por agora, permanecemos na fronteira do
desconhecido, entre paredes e objectos tão familiares. O idioma das águas está
a ser inventado naquele preciso instante do início da chuva, do princípio de
tudo; parece ser sempre a primeira vez, de cada vez que acontece alguma coisa:
o estrondo do trovão, o riso da criança, o ronco do automóvel pela manhã. Borboletas
imaginárias nas experiências de espanto.
Estamos fechados em casa, em permanente
delírio: quantos mortos?
Se tudo o que existe no mundo começou com
um não, o arrepio é a sensação mais pura que Deus inventou, para dar a
possibilidade aos humanos de contradizerem as tragédias. A Sua Mão a cair sobre
as nossas cabeças, desde sempre. Depois, a cena desenrola-se na nossa
consciência, como uma passadeira vermelha de vaidades, crimes, boçalidades e
absolvições. O arrepio continua a ser a resposta visceral à propagação de todos
os vírus, literais e metafóricos: a música que nos inebria, o poema que nos
fascina, a imagem que nos choca, a mazela que nos apavora, a atitude altruísta
que nos comove. E se para muitos Deus não é para aqui chamado, manter o arrepio
como sensação de vida parece-me razoável, prodigioso até. Afinal, ainda estamos
vivos.
Permaneço escondida em casa e espero um
caudal de milagres. Não me atrevo a pedir ajuda, porque não compreendo o que
está a acontecer. E enquanto a cidade exibe janelas fechadas e ruas vazias, espero
não ser vista pelo dragão. Acredito que essa perturbação interior e submissa só
pode ser captada com a lente especial do movimento das horas, que ainda não foi
inventada, apesar de toda a tecnologia patente no meu smartphone. É um relógio
que anda ao contrário, em direcção ao passado, aquele tempo familiar em que o
mundo todo nos pertencia. Agora, o espírito soterrado comanda a vida numa
absoluta concentração.
Um ponto, uma linha de luz, contemplação
introspectiva e difusa da estrela longínqua que guardo nas mãos e pretendo
devolver ao firmamento: esmola que dá tempo e mais tempo, movendo-se por entre
os dedos, caindo sobre a minha cabeça de aflição luminescente. Tu abres os
olhos ao brilho: foste visto quando apenas querias ser ouvido. A mão de Deus
curvada sobre a humanidade, essa espiral de antagonismos: quantos mortos? O
mundo, tal como o conhecíamos, chegou ao fim. Amanhã é um outro dia diferente.
Resta-te, pois, esperar, tal como todos nós. Mas, andando sobre o andamento do
tempo, pareces estar parado.
Lá fora, os pássaros cantam porque sabem
que a primavera já chegou.
Adília César
https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__242
Sem comentários:
Enviar um comentário