sábado, 29 de fevereiro de 2020

PROCURAR A PÁGINA QUE NOS FALTA


«1
O começo de um livro é precioso. Muitos começos são preciosíssimos.
Mas breve é o começo de um livro – mantém o começo prosseguindo.
Quando este se prologa, um livro seguinte se inicia.
Basta esperar que a decisão de intimidade se pronuncie.
Vou chamar-lhe fio _____ linha, confiança, crédito, tecido.»

Maria Gabriela Llansol, in O Começo de Um Livro É Precioso

Foto de Diego Cusano

O dom poético é uma inquietação prolongada no tempo real e no espaço imaginário. Por um lado, o tempo em que vive e escreve o poeta; por outro, o espaço geográfico e metafórico que o poeta ainda não conhece e sobre o qual escreve. Nesta luta entre o real e o imaginário tudo pode acontecer: a pandemia melancólica, o paradigma da contemplação do desastre sentimental, o desfile dos dramas pessoais e sociais. Aí se inscreve a imagem do escrito e do lido, o poema por descobrir; o poema que nos atrai e tantas vezes nos atraiçoa na intimidade que abrimos à lança de cada recomeço – na escrita e na leitura.

O poema é uma casa – o caos doméstico do pensamento íntimo, um entra-e-sai, a fuga e a recentração. Um poema chama o outro poema ao longo de uma linha, de um caminho singular, do princípio para o fim ou do fim para o princípio. A imagem do silêncio que o poeta constrói à volta das palavras e dos espaços entre as palavras escreve-se nos olhos do leitor, logo, a impressão causada pelo poema será sempre uma imagem das intensidades pensantes do imaginário de ambos – escrevente e ledor – numa tentativa de mútua não-anulação das intenções e das expectativas perante o texto poético em cada começo, e também face às páginas ainda não habitadas, as quais podem ser recomeços preciosos, respirações de escuta, procura e entendimento. Entrar e sair do poema para voltar a entrar.

Quando e onde é que a seta do poema nos atinge? No início, meio ou fim? Nas palavras ou nos espaços em branco? Depois de quantos recomeços? E se retirarmos todos os espaços vazios e permitirmos ao texto a mancha contínua de letras nas páginas do livro, como encontraremos o mapa da página que nos falta, aquela que fala com a nossa intimidade?

«Todas as coisas já estão ditas, mas como nin­guém escuta é pre­ciso re­começar sempre», disse o escritor francês André Gide. Na verdade, tudo é um recomeço inevitável: a noite a seguir ao dia, o clímax a seguir ao desejo, as lágrimas a seguir ao luto, o nojo a seguir à violência. E depois vamos à nossa vida.
É preciso escutar a murmúrio das palavras no meio de todo este ruído perpetuado pelas línguas impostoras.
Levar o caos criativo a esta virtual e falsa ordem de lugares comuns.
Pensar, indagar, recomeçar através das palavras, nem que seja apenas um poema onde a pulsão do poeta nos remete ao lugar que almejamos: o plano intencional da estética e da arte como intervenção social, um tempo real e um lugar imaginário como recomeços preciosos. A decisão da intimidade como descoberta de um outro eu.

Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__238

sábado, 15 de fevereiro de 2020

PATOLOGIA DA ARROGÂNCIA


(…) pessoas que pensam que tudo lhes é devido, que o mundo existe para lhes prestar vassalagem. (…) Enfim, tudo isto é velho como o mundo, mas tem dias em que aparece cru.
Anabela Mota Ribeiro

I

Patologia da arrogância. Esta não é uma expressão frequente na linguagem comum do dia-a-dia. Mas pensando bem, há muitas pessoas que sofrem ilusões de grandeza. Esses seres “iluminados” acreditam que são famosos, ricos, inteligentes; estão convencidos que são superiores aos outros; esforçam-se por nos subjugarem à sua perfeição, são manipuladores exímios através de meios persuasivos e magnetizantes. Cuidado, essas pessoas têm, na verdade, um grande poder – o de sugar a energia alheia.

Do ponto de vista psicológico, podemos aceitar que alguns destes indivíduos sofrem de Transtorno da Personalidade Narcisista (TPN), ao sobrevalorizarem as suas próprias características na importância e singularidade, quando ao mesmo tempo não aceitam como válido o êxito pessoal ou profissional dos que os rodeiam. Pensam que tudo está mal e que eles próprios teriam a solução para os problemas da sociedade. Os arrogantes não admitem a culpa e querem manter as aparências a todo o custo. Eles são insuportáveis… No Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM – IV a patologia é caracterizada por sentimentos exagerados de autoimportância, uma necessidade excessiva de admiração aliada a uma falta de compreensão dos sentimentos dos outros.

Mas afinal, seremos todos um pouco doentios, do ponto de vista da auto-estima?


Desejamos conhecer a nossa importância como indivíduos? Sim.
Necessitamos de alguma admiração por parte dos outros? Sim.
Falhamos frequentemente perante os sentimentos alheios? Sim.
Parece que o maior desafio tem a ver com a pressuposta fronteira entre o aceitável e o patológico. E acredito que todos ultrapassamos esses limites, pelo menos de vez em quando…


II

No Jornal Expresso de 8 de Fevereiro de 2020 pode ler-se uma reportagem de Chistiana Martins, após o episódio da criação de um index que proíbe a divulgação de clássicos da literatura do Brasil nas escolas públicas do estado de Rondónia:


"Medo do escuro?" - Jair Bolsonaro

“O governo do estado de Rondônia, no extremo norte do Brasil, determinou a recolha de 43 obras literárias por considerá-las ‘conteúdo inadequado’ para as escolas da rede pública. Entre os livros censuradas estão clássicos da literatura brasileira de autores como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Mário de Andrade, Nelson Rodrigues, Ferreira Gular, ou Rubem Fonseca, aquele que teve mais títulos excluídos: 19. (…) Também Aurélio Buarque de Holanda, autor do mais referenciado dicionário brasileiro e primo do autor e cantor Chico Buarque, tem obras retiradas do ensino público. Mas nem só autores brasileiros são censurados, também nomes universais como Franz Kafka ou Edgar Allan Poe foram rejeitados. (…) Rondónia é governado pelo coronel Marcos Rocha, seguidor da orientação ideológica de Olavo de Carvalho, considerado o mentor do Presidente Jair Bolsonaro. A ordem para retirar os livros terá vindo do secretário da Educação, Suamy Vivecananda, que classificou os livros incluídos na lista como tendo ‘conteúdos inadequados a crianças e adolescentes’.”


III

Primeiro proíbem os livros, depois queimam as ideias e… O que se seguirá é uma incógnita porque a patologia da arrogância é um fenómeno de fácil propagação e nunca será travado. Que havemos de fazer com tudo isto? Tirar a casca e comer cru? Ou devemos assumir o medo que temos do escuro, para enfrentarmos o negrume da censura e saltarmos no vazio metafórico do pensamento e da linguagem, acreditando que temos asas e conseguiremos voar?


sábado, 1 de fevereiro de 2020

CONTRA O ESQUECIMENTO


“Desde que comecei a desenhar a carvão, percebi que carvão e cinzas são iguais. E que esses seres humanos foram reduzidos a cinzas.”
Manfred Bockelmann*


Erdmann Schmidt, 7 anos, assassinado a 12 de Junho de 1943
  
O berço errado dos filhos do Holocausto. Talvez não haja uma injustiça maior do que a de nascer vítima da sua própria inocência e fragilidade. Crianças invocadas como impuras, vítimas das trevas da repressão. Não são mártires despojados da sua individualidade, os seus rostos não estão marcados pela fome, doença ou exaustão, os seus corpos não estão amontoados sobre outros cadáveres. Elas estão vivas e ainda enfrentam o martírio. Não sabendo o que as espera, “sabem” o que já não as espera: uma infância transfigurada pela crueldade.

O médico, de bata branca e lábios finos, prepara o equipamento fotográfico e as tabelas de registo. Recebeu ordens para documentar todo o processo experimental. Na sua frente, mais uma “praga popular” que precisava de ser eliminada para garantir a suposta “pureza do sangue alemão”: Erdmann tem 7 anos e ainda está a usar a roupa que trazia quando entrou no campo de Auschwitz. Tenta ajeitar o botão que parecia segurar um mundo de incerteza e submissão ao medo. O médico pergunta-lhe o nome e o rapaz responde “Erdmann Schmidt”, tentando mostrar-se afável e obediente. Apesar do ambiente aparentemente calmo e inócuo, o seu olhar vai ganhando uma dimensão inquiridora perante o desconhecido, abrindo-se à imaginação. O homem insiste na posição que ele deve tomar para ser fotografado, olhando-o de frente. Erdmann ainda sorri. Está tão nervoso que não consegue sequer pestanejar. Os olhos abertos, tão abertos como fontes de água começam a secar, a desvanecer a memória de outros tempos mais felizes. Erdmann já não sorri. Ele “sabe” da inevitável tragédia daquele lugar, já ouviu contos de fadas em que homens maus impossibilitavam os finais felizes.

Estou a ver-te, meu pequeno Erdmann, apesar de não estar aí contigo para te poder salvar. Tu és “o outro”, mas és o “outro-em-mim”. És tão belo, pareces emanar uma claridade própria da infância perante a tragédia irreparável. Vestes a tua melhor roupa. És todo luz de vida, mas hoje, perante o flash da máquina fotográfica, a esperança abandona-te, escurece as paredes brancas e imaculadas do espaço. Não sabes explicar porquê. Não sabes o que te farão, mas tens frio, sentes um frio palpável por dentro, levas as mãos ao peito e logo a enfermeira vem colocá-las, prontamente, onde elas estavam antes, encostadas ao teu corpo, como se fosses uma máquina. Talvez aqueles braços já não fossem os teus e por isso deixaste-os caídos, separados dos ombros, inaugurando uma nova posição aliada à força da gravidade que é agora a mãe da angústia, a tua única mãe. Os pesadelos abrem-se como desenhos da infância, apagando-se à medida que vão sendo feitos: inúteis, portanto, os pensamentos e os acontecimentos desenhados. Um conflito entre a utilidade e o propósito da existência. Os minutos passam encostados à porta, querem entrar à força para te levarem de uma vez por todas.

Perdoa-me, mas não te posso dizer que a tua carne será cortada e cosida. Que o teu sangue secará sobre as tuas dores perversas. Que chorarás o terror dos dias e das noites, o tempo eterno desse lugar. Que o teu espírito enfrentará o duro desígnio do esquecimento. Perdoa-me, meu querido Erdmann, mas não te posso dizer que serás assassinado no dia 12 de Junho de 1943.

Ninguém chorou por ti. Seria maravilhoso se pudessem fazê-lo agora, para que a tua vida tenha um desenho mais colorido. Porque se os seres humanos não se lembrarem da sua história, é porque não viveram.

Atelier de Manfred Bockelmann

Exposição «Manfred Bockelmann. Desenhar Contra o Esquecimento»

Manfred Bockelmann

A exposição especial «Manfred Bockelmann. Desenhar contra o esquecimento» foi inaugurada em Maio de 2013 no Museu Leopold de Viena e recebeu cerca de 100.000 visitantes nessa primeira exibição pública. Mostrou retratos em larga escala, feitos com carvão quebradiço sobre juta, de crianças e jovens que foram vítimas do maior genocídio do século XX, às mãos dos executantes do regime nazi. Os seus desenhos deixam-nos sem palavras, horrorizados e abalados. Manfred Bockelmann usa como modelo as fotografias tiradas pelas SS, nas quais a vida que se reflete nos olhos e rostos das inúmeras crianças assassinadas tanto nos emociona. Os retratos, de aparência “inacabada”, provocam precisamente o drama da infância interrompida, logo “inacabada”. O projecto "Drawing against oblivion” do artista austríaco Manfred Bockelmann pretende arrancar da anonimidade algumas das vítimas mais desprotegidas do maior genocídio do século XX. A ética humanística da exposição e do documentário exibido em 2015 proporciona a empatia com o espectador e torna-a uma das mais significativas para a história do Holocausto, no sentido de dar um nome e uma identidade aos rostos antes fotografados nos campos de concentração. O filme leva-nos numa viagem através de arquivos nos Estados Unidos, no campo de concentração de Auschwitz e de testemunhos de sobreviventes do Holocausto, que na altura eram crianças. A exposição e o documentário são apelos à tolerância e à humanidade, e tornam visível a única coisa que podemos fazer: tomar consciência do que aconteceu para evitar que algo semelhante se repita.

Em Portugal, por ocasião do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto (2019) foi inaugurada no dia 31 de Janeiro, no Andar Nobre da Assembleia da República, a exposição "Desenhar contra o esquecimento". Ficou patente até 8 de Março de 2019.


Para saber mais:


LÓGOS 10 - MAIO 2022 (ÍNDICE)