“Desde
que comecei a desenhar a carvão, percebi que carvão e cinzas são iguais. E que
esses seres humanos foram reduzidos a cinzas.”
Manfred Bockelmann*
Erdmann Schmidt, 7 anos, assassinado a 12 de Junho de 1943 |
O berço errado dos filhos do Holocausto.
Talvez não haja uma injustiça maior do que a de nascer vítima da sua própria
inocência e fragilidade. Crianças invocadas como impuras, vítimas das trevas da
repressão. Não são mártires despojados da sua individualidade, os seus rostos
não estão marcados pela fome, doença ou exaustão, os seus corpos não estão
amontoados sobre outros cadáveres. Elas estão vivas e ainda enfrentam o
martírio. Não sabendo o que as espera, “sabem” o que já não as espera: uma
infância transfigurada pela crueldade.
O médico, de bata branca e lábios finos,
prepara o equipamento fotográfico e as tabelas de registo. Recebeu ordens para
documentar todo o processo experimental. Na sua frente, mais uma “praga popular”
que precisava de ser eliminada para garantir a suposta “pureza do sangue
alemão”: Erdmann tem 7 anos e ainda está a usar a roupa que trazia quando
entrou no campo de Auschwitz. Tenta ajeitar o botão que parecia segurar um
mundo de incerteza e submissão ao medo. O médico pergunta-lhe o nome e o rapaz
responde “Erdmann Schmidt”, tentando mostrar-se afável e obediente. Apesar do
ambiente aparentemente calmo e inócuo, o seu olhar vai ganhando uma dimensão
inquiridora perante o desconhecido, abrindo-se à imaginação. O homem insiste na
posição que ele deve tomar para ser fotografado, olhando-o de frente. Erdmann
ainda sorri. Está tão nervoso que não consegue sequer pestanejar. Os olhos
abertos, tão abertos como fontes de água começam a secar, a desvanecer a
memória de outros tempos mais felizes. Erdmann já não sorri. Ele “sabe” da
inevitável tragédia daquele lugar, já ouviu contos de fadas em que homens maus
impossibilitavam os finais felizes.
Estou a ver-te, meu pequeno Erdmann,
apesar de não estar aí contigo para te poder salvar. Tu és “o outro”, mas és o
“outro-em-mim”. És tão belo, pareces emanar uma claridade própria da infância
perante a tragédia irreparável. Vestes a tua melhor roupa. És todo luz de vida,
mas hoje, perante o flash da máquina fotográfica, a esperança abandona-te,
escurece as paredes brancas e imaculadas do espaço. Não sabes explicar porquê. Não
sabes o que te farão, mas tens frio, sentes um frio palpável por dentro, levas
as mãos ao peito e logo a enfermeira vem colocá-las, prontamente, onde elas estavam
antes, encostadas ao teu corpo, como se fosses uma máquina. Talvez aqueles
braços já não fossem os teus e por isso deixaste-os caídos, separados dos
ombros, inaugurando uma nova posição aliada à força da gravidade que é agora a
mãe da angústia, a tua única mãe. Os pesadelos abrem-se como desenhos da
infância, apagando-se à medida que vão sendo feitos: inúteis, portanto, os
pensamentos e os acontecimentos desenhados. Um conflito entre a utilidade e o propósito
da existência. Os minutos passam encostados à porta, querem entrar à força para
te levarem de uma vez por todas.
Perdoa-me, mas não te posso dizer que a
tua carne será cortada e cosida. Que o teu sangue secará sobre as tuas dores
perversas. Que chorarás o terror dos dias e das noites, o tempo eterno desse
lugar. Que o teu espírito enfrentará o duro desígnio do esquecimento.
Perdoa-me, meu querido Erdmann, mas não te posso dizer que serás assassinado no
dia 12 de Junho de 1943.
Ninguém chorou por ti. Seria maravilhoso
se pudessem fazê-lo agora, para que a tua vida tenha um desenho mais colorido.
Porque se os seres humanos não se lembrarem da sua história, é porque não
viveram.
Atelier de Manfred Bockelmann |
Exposição «Manfred Bockelmann. Desenhar Contra o Esquecimento» |
* A exposição especial «Manfred Bockelmann. Desenhar
contra o esquecimento» foi inaugurada em Maio de 2013 no Museu Leopold de Viena e recebeu
cerca de 100.000 visitantes nessa primeira exibição pública. Mostrou retratos
em larga escala, feitos com carvão quebradiço sobre juta, de crianças e jovens
que foram vítimas do maior genocídio do século XX, às mãos dos executantes do
regime nazi. Os seus
desenhos deixam-nos sem palavras, horrorizados e abalados. Manfred Bockelmann
usa como modelo as fotografias tiradas pelas SS, nas quais a vida que se
reflete nos olhos e rostos das inúmeras crianças assassinadas tanto nos
emociona. Os retratos, de aparência “inacabada”, provocam precisamente o drama da
infância interrompida, logo “inacabada”. O projecto "Drawing against
oblivion” do artista austríaco Manfred Bockelmann pretende arrancar da
anonimidade algumas das vítimas mais desprotegidas do maior genocídio do século
XX. A ética humanística da exposição e do documentário exibido em 2015 proporciona
a empatia com o espectador e torna-a uma das mais significativas para a
história do Holocausto, no sentido de dar um nome e uma identidade aos rostos
antes fotografados nos campos de concentração. O filme leva-nos numa viagem através de arquivos nos
Estados Unidos, no campo de concentração de Auschwitz e de testemunhos de
sobreviventes do Holocausto, que na altura eram crianças. A exposição e o
documentário são apelos à tolerância e à humanidade, e tornam visível a única
coisa que podemos fazer: tomar consciência do que aconteceu para evitar que
algo semelhante se repita.
Em Portugal, por ocasião do Dia Internacional da Lembrança do
Holocausto (2019) foi inaugurada no dia 31 de Janeiro, no Andar Nobre da
Assembleia da República, a exposição "Desenhar contra o esquecimento".
Ficou patente até 8 de Março de 2019.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__234
Para saber mais:
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