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O começo de um livro é
precioso. Muitos começos são preciosíssimos.
Mas breve é o começo
de um livro – mantém o começo prosseguindo.
Quando este se
prologa, um livro seguinte se inicia.
Basta esperar que a decisão
de intimidade se pronuncie.
Vou chamar-lhe fio
_____ linha, confiança, crédito, tecido.»
Maria Gabriela
Llansol, in O Começo de Um Livro É Precioso
Foto de Diego Cusano |
O dom poético é uma
inquietação prolongada no tempo real e no espaço imaginário. Por um lado, o
tempo em que vive e escreve o poeta; por outro, o espaço geográfico e
metafórico que o poeta ainda não conhece e sobre o qual escreve. Nesta luta
entre o real e o imaginário tudo pode acontecer: a pandemia melancólica, o
paradigma da contemplação do desastre sentimental, o desfile dos dramas
pessoais e sociais. Aí se inscreve a imagem do escrito e do lido, o poema por
descobrir; o poema que nos atrai e tantas vezes nos atraiçoa na intimidade que
abrimos à lança de cada recomeço – na escrita e na leitura.
O poema é uma casa – o
caos doméstico do pensamento íntimo, um entra-e-sai, a fuga e a recentração. Um
poema chama o outro poema ao longo de uma linha, de um caminho singular, do
princípio para o fim ou do fim para o princípio. A imagem do silêncio que o
poeta constrói à volta das palavras e dos espaços entre as palavras escreve-se
nos olhos do leitor, logo, a impressão causada pelo poema será sempre uma
imagem das intensidades pensantes do imaginário de ambos – escrevente e ledor –
numa tentativa de mútua não-anulação das intenções e das expectativas perante o
texto poético em cada começo, e também face às páginas ainda não habitadas, as
quais podem ser recomeços preciosos, respirações de escuta, procura e
entendimento. Entrar e sair do poema para voltar a entrar.
Quando e onde é que a
seta do poema nos atinge? No início, meio ou fim? Nas palavras ou nos espaços
em branco? Depois de quantos recomeços? E se retirarmos todos os espaços vazios
e permitirmos ao texto a mancha contínua de letras nas páginas do livro, como
encontraremos o mapa da página que nos falta, aquela que fala com a nossa
intimidade?
«Todas as coisas já
estão ditas, mas como ninguém escuta é preciso recomeçar sempre», disse o
escritor francês André Gide. Na verdade, tudo é um recomeço inevitável: a noite
a seguir ao dia, o clímax a seguir ao desejo, as lágrimas a seguir ao luto, o
nojo a seguir à violência. E depois vamos à nossa vida.
É preciso escutar a murmúrio
das palavras no meio de todo este ruído perpetuado pelas línguas impostoras.
Levar o caos criativo
a esta virtual e falsa ordem de lugares comuns.
Pensar, indagar,
recomeçar através das palavras, nem que seja apenas um poema onde a pulsão do
poeta nos remete ao lugar que almejamos: o plano intencional da estética e da
arte como intervenção social, um tempo real e um lugar imaginário como
recomeços preciosos. A decisão da intimidade como descoberta de um outro eu.
Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__238
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