Anna é linda. Ela é linda e isso
basta-me.
O sol bate na casa amarela dela, é
quase como um sinal de Deus.
(Jimmy, 5 anos de idade)
Caligrafia de Fep |
O pequeno Jimmy deambula pelo espaço. É visível um vazio expressivo sinistro, um vagar anestesiado, enquanto recita um poema. Lisa Spinelli, a sua educadora de infância, escreve de forma compulsiva cada um dos versos, ditos numa linha melódica de uma nota só, num caderno vagamente destroçado que carrega consigo para toda a parte. Nesse caderno está escrevinhada toda a ânsia de Lisa em ser poetisa: insinuações de uma escrita pretensamente poética que não convence ninguém. Mas os poemas de Jimmy são como pequenas luzes que dão vida a esse caderno e a mulher torna-se obsessiva na sua missão de salvar o talentoso menino da banalidade da vida que o espera: crescer, tornar-se adulto, ganhar a vida, ter uma família; e depois morrer, como de costume. Lisa não consegue submeter-se aos valores práticos da sociedade em que ambos se inserem e de um modo doentio organiza uma sequência de eventos manipulatórios em torno das pessoas com quem convive, inclusive a família de Jimmy, para salvar a genialidade rara da criança, a qualquer custo, uma vez que ela acredita que a sociedade tudo fará para a esmagar. A obsessão vai demasiado longe e Lisa rapta Jimmy, levando-o a passar algum tempo num ambiente de comunhão com a natureza, junto a um lago, numa tentativa de incentivar a criação poética do menino. Mas ele fica assustado e só quer voltar para casa. Quando a polícia chega para o resgatar, Jimmy é colocado sozinho no carro de patrulha e as últimas palavras que se ouvem são dele:
- Tenho um poema. Tenho um poema! Mas
ninguém ouve o seu poema. É o princípio do fim preconizado por Lisa.
- Que belo argumento para um filme,
de uma complexidade psicológica vibrante, diriam os leitores desta
crónica. De facto, a ideia deste argumento pertence a Sara Colangelo que
realizou o filme The Kindergarten Teacher, pelo qual recebeu o prémio de
melhor realização no Festival de Sundance, fazendo também parte da selecção
oficial do Festival de Toronto. Foi estreado em Portugal em 2019 e o Cineclube
de Faro exibiu-o no dia 1 de Outubro. A viagem perigosa, desesperada e metafórica,
vivenciada pelos dois protagonistas, é uma chamada de atenção sobre as relações
de poder do adulto educador para com a criança educanda, com fronteiras éticas
sempre difíceis de definir. Do ponto de vista de Lisa, a frustração leva-a a
executar sucessivos rituais obsessivos que a conduzirão, muito provavelmente e
durante um tempo considerável, a uma penitenciária. Do meu ponto de vista de
educadora de infância que desenvolve um projecto pedagógico de sensibilização à
poesia, recuso submeter-me a angústias de antecipação dos destinos artísticos
das crianças que acolho todos os dias. Vi o filme através dos olhos de uma
educadora que privilegia a ambiência pedagógica proporcionadora de
desenvolvimento artístico precoce nas crianças (função que exerço há mais de 30
anos). E depois, deixo-as ir: as crianças, as luzes poéticas, as raras
genialidades. Talvez de vez em quando consiga despertar nessa grande infância
que acolho há tanto tempo uma centelha potencialmente estética e isso basta-me.
O pequeno Jimmy tinha um tio que lhe lia
poemas, o que foi crucial, decerto, para a criação dos seus versos. Ora Jimmy
não simboliza a criança comum e a argumentista confere a essa personagem uma
força e uma maturidade que raramente se vêem numa criança de 5 anos. Na
verdade, os poemas ditos ao longo do filme foram na realidade escritos por
três adultos - Kaveh Akbar,
Dominique Townsend e Ocean Vuong – considerados grandes poetas contemporâneos.
Mas o filme deixa-nos uma pista importante para que a poesia possa fazer parte
da vida de qualquer pessoa: é imperioso guardar os versos da infância na
pequena concha das mãos.
Deixo-vos um poema pensado e dito pelo
Tiago P. de 4 anos, em contexto de jardim de infância. É um poema de
intervenção social, de afirmação do eu poético e intensamente humano. A
profundidade da reflexão surpreendeu-me pela simplicidade, pelo efeito emocional
e estético que provocou em mim (não é essa uma das funções da poesia, a de
assumir uma voz provocadora?). Hoje, o Tiago tem 7 anos e já não pensa em poesia.
Os contextos familiar e escolar que o acolhem tendem a não valorizar esse tipo
de competência. Mas este poema saiu de dentro dele, pertence-lhe e isso
basta-me:
Santiago rima com Tiago.
Eu gosto dos nossos nomes que são poemas.
O meu poema é mais pequenino.
Mas eu sou mais do que o meu nome.
Sou mais do que um som: sou o Tiago.
(Tiago P., 4 anos)
Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__221
Trailer do filme A Educadora de Infância:
https://www.youtube.com/watch?v=nRYKNn2FcmE
Belo e cheio de esperança!
ResponderEliminar