«A arquitectura é música
petrificada.»
Johann Wolfgang von Goethe
(1749-1832)
Marion Mahoney Griffin (1871-1961) |
Caminham devagar, em silêncio, ainda
hesitantes. De repente, caem pingos de aguarelas. Ambos correm na direcção que Marion
indica, até à parede mais próxima. Frank encosta as palmas das mãos à
superfície vertical e quente do edifício antigo, onde ela pernoita. É o
crepúsculo de todos os dias, repetitivo e mágico: a hora sublime em que a
matéria guarda o desejo do sol de aquecer o mundo inteiro. Ela, de olhos
fechados, os braços caídos ao longo do corpo, de costas coladas à barriga morna
da estrutura. A imobilidade é total enquanto o plano tridimensional da
substância da emoção começa a ganhar forma. Marion percepciona o corpo alto e rectilíneo,
aquela espécie de parede interior que a segura, mas não sabe o que fazer em
relação a isso. Adivinhou a sua força descomunal nos movimentos arquitectónicos
junto à imensa parede acinzentada e rugosa, como uma pele velha que teima em
sobreviver às intempéries. É o corpo
mais rectilíneo que ela já sentiu, ao mesmo tempo frágil como um vitral:
imaginou os ossos brancos e a carne vermelha coberta por outra pele, um fato
feito por medida que ela habitaria por dentro, servindo-lhe na perfeição. A
porta logo ali, a chave imaginária cravada na mão direita: um prumo para a
situação peculiar em que ambos se encontravam. Marion queria que ele entrasse,
mas Frank não sabia que ela queria que ele entrasse.
- Vê, não olhes apenas: a tua mente é como
um imenso guarda-chuva, será muito mais útil se a abrires.
Conheceram-se há duas horas, no mercado. Tocar
a mesma laranja, olhar a superfície dos olhos. Nada foi dito, apenas adivinhado
nos pequenos gestos: cortar a laranja ao meio, morder os gomos, deixar escorrer
o sumo até aos cotovelos. Havia uma sintonia surreal nos gestos brandos e
lentos, dir-se-ia uma coreografia de duas personagens num espectáculo que
ninguém está a ver, actores a representar a vida. Uma quase perfeição estética,
quase a decidir-se de uma vez por todas.
Marion tinha uma convicção que moldava
todos os seus caminhos percorridos: não se conhece uma pessoa enquanto não a
observarmos no interior do seu próprio lar. A casa, essa habitação completa que
organiza as veias e o pensamento do ser humano através de uma melodia
petrificada nas paredes, no chão, no tecto, no tempo. Uma bela canção feita de
pedras, ferro, cimento, vidro, cal. Por vezes, pintada com sangue e outros
martírios a pingar sobre desperdícios partidos. Ela queria que ele entrasse,
queria dar-se a conhecer àquele homem denso e profundo. O clique da chave a
abrir a fechadura é o bilhete de entrada. Frank agora também sabia que ela
queria que ele entrasse. Dentro da casa a mão toca o desejo, o tempo pára na
escuta dos corações. Fecha-se a janela para não sair a solidão, é imperioso que
Frank perceba a solidão de Marion.
- Podes ler-me, tacteando tacteando, conhecer-me.
Planeando mapas sentimentais, cravando alicerces na linguagem do espírito,
preenchendo espaços vazios entre os gestos expressivos dos corpos. Pintar a
urgente aguarela do amor, queres? Se no interior do corpo houver um lugar, uma
opacidade que eu queira que transpareça, este véu sobre o soalho, este painel a
revelar a nossa imaginação, os alicerces da vida. Tudo seria uma forma de ser
tua, tudo seria um modo de te comoveres. Esta é a nossa casa, a nossa
arquitectura emocional. O amor e o seu contrário, a casa verdadeira e a sua
ruína tombada. Fica, na luz ou na sombra, tanto faz.
Olham-se agora como se olhassem um
espelho, porque no discurso dos espelhos é permitido olhar para dentro. A pele
abstracta, singular nos pigmentos escolhidos, quando os corpos se juntam e se
misturam na primeira ornamentação. O coração dele estava cansado, tinha viajado
de estátua em estátua, não se sabia porque ainda não tinha escolhido a sua
deusa. A melodia era tão inaudível como o sussurro de lascas a cair sobre palavras
não ditas, sobre aguarelas inacabadas.
Agurela de Marion Mahoney Griffin |
(Marion Mahoney Griffin (1871-1961) é considerada
a primeira mulher do mundo a ser oficialmente licenciada como arquitecta, em
1894. No ano seguinte começou a trabalhar no escritório do fulgurante Frank
Lloyd Wright (1867-1959), desenhando prédios, móveis, vitrais e painéis
decorativos. Foram as suas aguarelas que imprimiram a marca do estilo de
Wright. Esta parceria profissional durou cerca de 15 anos. Em 1909 casa com
Walter Burley Griffin e juntos desenvolveram projectos arquitectónicos de longo
alcance, nos Estados Unidos, Austrália e Índia. Em 2005, o Block Art Museum da
Universidade de Northwestern, Illinois, USA, apresentou uma extensa exposição
com os trabalhos desta arquitecta e artista gráfica, uma das primeiras
arquitectas invisíveis).
Adília César, in Algarve Informativo Nº 202
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__202
Adília César, in Algarve Informativo Nº 202
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