LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de
entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de
autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais
pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas
contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7
entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do
Tempo.
LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que
poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece
haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de
“inspirados”?
MARIA JOÃO CANTINHO: Efectivamente há muitos poetas
em Portugal, mas creio que isso se passa em todo o lado. Há uma espécie de
imediatismo que encontra na poesia a expressão dos sentimentos (ainda que ela
também o seja, mas deve fugir-se ao sentimentalismo na poesia). O que distingue
um bom poeta dos demais, entre vários factores, deve-se ao facto de, na maior
parte das vezes, ele começar por ser um leitor de poesia, o que o forma e lhe dá
os instrumentos necessários para o exercício da poiesis. A ideia de que os
poetas são inspirados ou eleitos, possuídos (ainda que alguns o sejam), é um
mito do pré-romantismo, que hoje se encontra ultrapassado. Não vejo mal em que
haja muitos inspirados e que isso os faça felizes, mas a crítica e o tempo
fazem justamente essa distinção entre o trigo e o joio. Para a vida e também para a
arte a inspiração, o desejo pulsional são absolutamente fundamentais, mas a
vigilância crítica é fundamental. Outra coisa é o facto de haver tão poucos
leitores de poesia. Não há, na nossa cultura, nada que incentive à leitura da
poesia, como existe noutros países, em que as crianças começam a fazê-lo cedo e
educam o gosto. É um problema de educação, sobretudo. Não se lê, de facto.
Vê-se televisão a mais, muita porcaria, má música, má literatura, e nisso os
professores e os programas educativos devem empenhar-se a fundo, bem como os
poetas devem descer do seu pedestal e contribuir para mudar a situação. Muitas vezes são
eles que se enfeudam, recusando-se a aparecer e a participar em leituras de
poesia, culpando o sistema. Mas, se eles não estabelecerem a aproximação com os
leitores, como mudar o estado de coisas? O gosto pela poesia começa no ouvido,
normalmente, a leitura só vem numa altura em que o leitor está mais
amadurecido.
LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de
ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.”
Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o teu «ponto de partida»
para a construção de um poema?
MARIA JOÃO CANTINHO: Parece algo pretensioso exigir
do poeta ou do escritor a originalidade. Mas é na forma como ele o diz que se
estabelece o «arranque» do poema e aí concordo com Ortega Y Gasset. Quem tenha
lido os clássicos, desde o Gilgamesh ou poetas como Rumi, Homero e por aí afora
sabe que o humano se constitui através de topói
que são comuns. A poesia é indigente, nesse sentido, tem a mesma origem de
Eros, o semi-deus inquieto e permanentemente insatisfeito, movido pelo desejo,
lutando por compreender a tragédia humana, a sua miséria, mas também o que nos
eleva acima dessa finitude intrínseca. Nesse sentido, há uma vocação eterna e
universal no poeta, que se aloja na dobra do tempo e o acomete, num afã de
escavar a linguagem à procura da palavra justa. E é nessa tensão, nessa procura
de justeza entre o Mundo e a Palavra que se constrói o espaço do poema. Sem
essa tensão não há poema, como não há arte, não há criação. A inquietação é o
que faz nascer o poema, esse estremecimento diante do acontecimento.
LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a
falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tens
consciência da «utilidade» da tua poesia no mundo?
MARIA JOÃO CANTINHO: A poesia não tem «utilidade»,
senão confundir-se-ia com jornalismo ou qualquer outra retórica ao serviço de
qualquer coisa, instrumentalizada. Se, por vezes, o poema vai ao encontro do
leitor do seu tempo, isso é felicidade pura. Mas se não vai, também não é
dramático, o tempo há-de trazer o que é importante. Creio que a poesia de
qualidade é, muitas vezes, hermética e inacessível, ainda que possa tocar
meia-dúzia de leitores. A poesia de Paul Celan, por exemplo, é profundamente
enraizada no seu tempo, o da catástrofe, mas no seu tempo não foi acessível. É
muito mais lida, interpretada e compreendida hoje, à luz do que sabemos. No seu
tempo concitou mesmo ao desagrado de Adorno, que só percebia de poesia lírica
(a tradicional, no seu tempo). Se o poeta vive agarrado ao seu tempo, estará
sempre amargurado, à espera do retorno da crítica e do aplauso. E se isso
acontece também é de duvidar porque, se calhar, ele não estará a dizer nada de
original. Tragédia é querer ser reconhecido no seu tempo, pois aquele que o faz
vive amargurado.
LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas
amplamente” (Mattew Arnold). És tentada, como poeta, a destruir a linguagem
para criar outra linguagem?
MARIA JOÃO CANTINHO: Sim e não. Há formas subtis de
o fazer que não passam por escrever ao arrepio da linguagem. Criar novas
palavras, repetições rítmicas que reforcem o poder mágico da linguagem, isso é
encontrar uma força indomesticável que nela existe e de que não nos damos conta
na linguagem banal. Mas não sinto essa vontade de destruir, como alguns poetas
sentem, para criar a originalidade. Talvez porque não acredito nessa
originalidade. Li demasiado para cair nessa armadilha.
LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo
tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da tua poesia é mistério e
«leitura infinita»?
MARIA JOÃO CANTINHO: Pergunta difícil, essa. Porque
se a tarefa da poesia é a arte de caminhar através do mistério da linguagem, de
a descobrir como realidade metafórica, simbólica, esse mesmo trabalho ressoa no
leitor. E quanto a isso não posso fazer nada. Ao mesmo tempo, mesmo quando
procuro a cifra, o espaço simbólico e fechado, tenho consciência de que há um
diálogo com o leitor que, muitas vezes, sou eu própria, que procuro aceder a
esse mistério. De camadas múltiplas, mais ou menos conscientes, mas sempre
polimorfo, equívoco. Se a poesia se esgota numa única leitura, então não é
poesia.
LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como
as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John keats). Qual é a
tua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna
falsidade de vozes?
MARIA JOÃO CANTINHO: Não sei se percebo bem esta
questão. Não me interessa nada a quantidade de poetas que escreve,
interessam-me os que gosto de ler e acho óptimo que escrevam muitos, pois o
tempo exercerá o seu jugo. Não me cabe a mim julgar se as vozes são falsas ou
não, só me interessa o que eu faço com a minha voz e se não me falseio a mim
mesma. Somos livres de fazer o que nos apetece e livres de lermos o que
queremos, também. É isso que é importante. Enalteço o que amo porque amo, eis o
que me importa. E respeito os poetas, independentemente de gostar ou não das
suas vozes. Penso muitas vezes que sou eu que não alcanço e evito classificar aquilo de que não gosto, há que ser humilde diante do trabalho dos outros. E olharmos
a nós próprios.
LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do
espírito que nomeia a vida?
MARIA JOÃO CANTINHO: No meu caso (e só posso falar
por mim enquanto poeta e não como crítica), a poesia é um trabalho de linguagem
e de solidão, nesse sentido é confissão e procura da nomeação, obsessão de
encontrar essa justeza entre o Mundo e a Palavra. Isso é nomear e é também
resgatar o mundo. E esse trabalho solitário é, por isso, confessional.
LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o
que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na tua
obra o que pretendeste, deliberadamente, que permanecesse invisível numa
primeira leitura?
MARIA JOÃO CANTINHO: Sim, na apresentação do meu
livro O Traço do Anjo uma professora
de português extraordinária, Fernanda Branco, deu-me a ver coisas que eu queria
ocultar. E o grande crítico Rui Magalhães, que infelizmente não publica há
muito tempo, também o fez relativamente ao meu livro Sílabas de Água. O que me faz pensar que, se calhar, sou péssima a
jogar às escondidas…mas há uma dimensão do simbólico e do inconsciente que
qualquer crítico avisado descortina numa obra, se a ler de coração e espírito.
LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é
uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco).
Consideras que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que
procura ter uma boa relação com os sentimentos?
MARIA JOÃO CANTINHO: Eu suspeito muito (ainda que
também respeite muito por ser mais difícil) da poesia muito formal. Às vezes,
esse formalismo pode tornar-se excessivo e tornar-se um obstáculo à leitura
fluída do poema. Eu gosto do poema-fala, do poema-diálogo. É a minha família ou
a minha linhagem, se quisermos chamar-lhe assim. Mas temos poetas
extraordinários a fazer uma poesia formal de altíssima qualidade. Alguns
tocam-me profundamente, a outros sinto-lhe a falta de intimidade ou de alma. Mas
isto é subjectivo, não pode ser uma medida objectiva, é só o meu gosto.
LÓGOS: O poeta dá rosto e nome às pequenas coisas
que os que não são poetas não conseguem reconhecer?
MARIA JOÃO CANTINHO: O «rosto» é um dos topoi mais
trabalhados na poesia francesa e não é por acaso. Porque essa linhagem poética
filia-se numa ética levinasiana. Um dos livros que mais gostei de ler no último
ano foi o de uma jovem poeta chamada Aurelie Lassaque, que se intitula En Quête d’un Visage. É uma poesia
profundamente ancorada nessa temática, que é também a de uma busca pela
dignidade humana. João Rui de Sousa e António Ramos Rosa trabalhavam muito esse
tema, por exemplo (mas de uma forma mais lírica). A minha é uma poética das
pequenas coisas, por isso o título Do
Ínfimo, justamente nesse sentido de procurar ver o que nos passa
despercebido, o que fulgura e desaparece no mesmo instante. Não apenas um
trabalho de memória, mas sobretudo de concentração nesse olhar das pequenas
coisas, que já não olhamos, desfocados que somos da Vida.
Biografia:
Maria João Cantinho nasceu em
Lisboa em 1963 e passou a infância em Angola, de onde voltou em 1975. Estudou
Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, onde realizou o mestrado e o
doutoramento, na área de Filosofia Contemporânea. Tem 4 obras de ficção publicadas
em Portugal, 2 no Brasil e em 2006 foi finalista do Prémio Telecom, com a obra Caligrafia da Solidão. Tem 4 livros de
poesia publicados e a sua última recolha, Do
Ínfimo, foi premiada com o Prémio Glória de Sant’Anna (2017). Tem obras (2)
de carácter ensaístico e escreve regularmente ensaios e crítica para diversas
revistas literárias e académicas, como a Colóquio-Letras, Revista Pessoa, etc.
É investigadora do CFUL, na Faculdade de Letras e do Centre d’Études Juives da
Universidade Sorbone IV. Co-organizou e co-editou diversas obras de filosofia e
antologias de poesia e literatura para a Blanco
Móvel, Poème d’Aujourd’hui, Revista Lichtungen. Pertence à direcção do PEN
Clube Português e é sócia da APE (Associação Portuguesa de escritores) e da
APCL (Associação Portuguesa de Críticos Literários). Foi presidente de júri do
PEN, nas modalidades de Narrativa, Poesia e Ensaio e tem integrado vários júris
da APE e da APCL. É editora da Revista
Caliban.
https://escritores.online/escritor/maria-joao-cantinho/
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