Em
Arte, a copiosa, exuberante, luxuosa e florida fantasia cansa, esquece e passa
– e só há eternidade para a beleza pura e simples.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
|
Fragmento de "As Folhas Mortas" (1956), de Remedios Varo |
*
INESPERADAMENTE,
um
convite. Meia dúzia de figuras de estilo trocadas entre nós e surgiu a ideia de
um jantar. Aceitei com uma genuína expectativa. Afinal de contas, não é todos
os dias que surge um poeta na vida de uma mulher. Sentia-me como uma personagem
glamorosa de uma peça em estreia absoluta, no palco mais badalado da cidade, e
possuidora de um elegante fascínio. Em suma, pronta a viver uma cena memorável.
A boca sabia-me a algo nunca antes saboreado, como uma fruta exótica sem nome. E
depois esquecer e voltar à vida normal. Este seria o primeiro passo numa
sucessão de eventos que viria a mudar a minha desinteressante existência, no
que diz respeito a relacionamentos com homens. Nunca tinha conhecido um poeta.
Mas mesmo sem nunca o ter visto, tendo em conta que nos tínhamos encontrado de
modo virtual, eu conseguia ver nitidamente o contorno do rosto, a cor da pele,
os gestos lentos, a voz macia, a inteligência perspicaz. Um boneco virtual-vivo
para o meu prazer, feito à medida da minha fome. Seria um jantar totalmente
planeado com o objectivo de comer tudo a que tivesse direito. Nem que fosse
preciso pagar um preço: tanto esforço para uma única noite, como uma peça de
teatro que é representada no momento da estreia e nunca mais se repete. Um
evento único.
*
A
MINHA CURIOSIDADE
era
voraz. Comecei a preparar-me vinte e quatro horas antes. Depilação, exfoliação
da pele e massagem, cabeleireiro, unhas de gel com brilhantes. Vestido decotado
e justo, pelo joelho. Sapatos de salto alto. Meias de ligas e lingerie a
estrear. Aroma denso de rosas. Vermelho total, mas com classe. Perfeito. Uma
provocadora elegância. Ousava querer causar uma impressão semelhante a uma
tatuagem vermelha inscrita no corpo de um dos poemas dele. Dei por mim a
imaginar que tudo poderia mudar, que os meus esquemas mentais ultrapassariam a
banalidade dos meus dias e das minhas noites, e que a poesia me levaria a um
submundo de descoberta de deleites. Do previsível à surpresa. Uma viagem em
contramão. Mas se o encontro fosse um autêntico desastre, sem qualquer
hesitação eu sairia airosamente de cena, tal como já havia acontecido noutras
situações similares, mas desta vez para sempre, deixando um vermelho
inesquecível. Uma imagem de marca.
*
VESTIDA
com
o meu vermelho delicioso e outros adjectivos, estava decidida a apropriar-me de
todos os advérbios de modo que conhecia, adequadamente aplicáveis a este evento
tão peculiar. Não há palavra mais sedutora do que um advérbio de modo bem
deglutido. Sentia uma inspiradora abertura a um mundo que eu não dominava,
estando tão desejosa para enveredar definitivamente pelas vivências do prazer
fora de casa, em detrimento das horas solitárias perdidas em frente da
televisão. O entusiasmo corroía-me por dentro e dotava-me de uma autoconfiança
que parecia roubada a outro tipo de mulher que eu nunca tinha sido. Via essa
mulher que não era eu, no espelho, em frente do qual montei o cenário com os
adereços necessários: uma mesa e uma cadeira, destinadas a ensaiar o encontro.
Respirei fundo e preparei-me, tentando assumir a personagem de femme fatale,
de acordo com a primeira parte do meu manual de instruções, tendo em conta os
conhecimentos adquiridos ao longo da última década, estagiados nos inúmeros
encontros que experienciei. Manter a calma e a postura. Inclinar levemente o
rosto para o lado direito. Sorrir languidamente em jeito de mulher-menina, com
um toque de ousadia, mas não demasiado. As pernas levemente entreabertas e
receptivas aos pequenos toques acidentais. Essa seria a chave do enigma: uma subtil
disponibilidade corpórea. Ensaiei mil vezes. E outras mil ainda, ao longo da
tarde. Finalmente, o momento do triunfo: era isto. A mulher que não era eu e
que agora via no espelho, era eu. Estava pronta.
*
A
MESA INTIMISTA
era
o prenúncio da aventura. O centro do alvo da minha jogada. Avancei, coberta de
perfume e de confiança. Uma cenografia que parecia agora abrir uma cortina de
fumo misteriosa a envolver a minha presença. Sentei-me o mais graciosamente
possível, pronta para qualquer eventualidade, sem dizer uma palavra. Ele já
tinha chegado. Lia um pequeno livro de capa brilhante, com umas pequenas linhas
de versos nas páginas em branco quase total. Uma poesia depurada e concisa, bem
contemporânea. Por certo, de algum poeta da margem publicado numa editora
alternativa. O meu sincero interesse pela literatura e os conhecimentos
adquiridos com centenas de horas dedicadas à leitura seriam úteis para o início
de conversa. Quebrar o gelo e mostrar alguma inteligência. Ele apresentava um
certo ar de esfomeado, um não sei quê de inconveniente e, de repente, sem
parecer dar-se conta da minha presença, comeu um poema inteiro. Pura e
simplesmente, comeu-o nu e cru. Parecia professar aquela inclinação semiótica
da obsessão doutrinal com que tendencialmente se dissecam os signos da
linguagem, transformando-os em sistemas de significação, a roer os corpos dos
sujeitos e dos predicados, como se nada mais houvesse a fazer para cumprir uma
existência poética e abstracta.
*
OS
MEUS PENSAMENTOS
eram
boomerangs de interrogações. A poesia também serve para comer? Ou a apreciação
de um poeta deve ter em conta um certo hermetismo dos sentidos? Estaria eu
perante um fenómeno cultural? Ou a ponte que une o acto expressivo e a obra de
arte vai implodir numa orgia? Ele era agora um ser que transbordava uma inquietude
inviolável e infinita. Uma estética racional do tempo silencioso cheio de
poesia. O nada que é tudo, nos pensamentos do futuro que agora nos pertencia.
Uma a-realidade congénita e doentia. Olhava-o perplexa e o desejo vermelho era
agora assombrado pelo medo, pela angústia do seu domínio sobre mim. Um prisma
de novas cores, alteradas pelas emoções renovadas. Precisamente o contrário do
que eu pretendia. Uma jogada terrível e acumuladora de triunfos que não faziam
parte do meu universo estratégico. Não conseguia pensar. Quais eram as regras
do jogo? Estavam os dois jogadores em pé de igualdade, munidos dos mesmos
conhecimentos e dotados de uma inteligência equiparável, de forma a jogarem um
jogo limpo e justo? Ou o jogo do amor é sempre desigual? Ele era, de facto, um
homem rude – um poeta?! – a comer directamente do pensamento para as mãos, sem
regras, a destruir toda e qualquer estrutura sintáctica. O molho silencioso a
escorrer pelos seus dedos e a secar nos cantos perversos da boca léxica. Na
minha frente, um canibal de palavras.
*
APÓS
O CHOQUE INICIAL
hesitei
sobre a consciência fonológica adequada à especificidade do discurso, a
expressar em tão surreal circunstância. Abri a boca para dizer “ah” ou outra
onomatopeia qualquer e naquele preciso momento, ele inclinou-se sobre o meu
rosto enjoado e depositou na minha língua o poema mastigado, uma papa de
palavras ainda vivas, que clamavam por misericórdia. Uma surpreendente
alegoria. Uma poesia amarga e desconfortável dissolveu a minha interioridade
falsa e a abordagem daquele poeta desconhecido fez estremecer o espelho onde
ainda me reflectia. A imagem da mulher sedutora estilhaçou-se no meu coração,
ansioso e renascido. Um mal estar por bem querer ser. Uma extravagância física
e emocional. Um consenso transgressor, entre eu e ele. Uma provocação
perturbadora a fazer ansiar por mais. A criar dependência, não na mulher que eu
queria ser, mas na mulher verdadeira que eu era, na mulher que ele agora via. És
um poeta? És mesmo um poeta? Então quero conhecer-te, ler-te melhor. Após a
paradoxal sucessão de eventos a que me obriguei a fazer parte, atingi o ponto
sem retorno e tomei a decisão mais importante da minha vida. Talvez eu faça
uma viagem a esse sabor metafórico tão sombrio, mas nunca mais aceitarei um
convite teu para jantar. Sim, eu sei, a simplicidade não faz parte desta
equação porque a Arte prevalece no insondável.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__289