sábado, 27 de março de 2021

NOTAS CONTEMPORÂNEAS [12] por Adília César

 Para ensinar, há uma formalidadezinha a cumprir – saber.

 

Eça de Queirós (1845-1900),

in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)

 

"A Queda" de Paul Klee

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HÁ PESSOAS

que são como arsenais do conhecimento. Guerreiros prontos a lutar em qualquer frente. O seu combate diário é uma guerra constante: a aniquilação intelectual do outro, empanturrado com noções, factos, pontos de vista, ideias, pressupostos, certezas inabaláveis; os outros, derrubados pelas rajadas de sabedoria, atrofiam o espírito, resumindo a activação dos seus neurónios a uma nova app, uma nova série televisiva, um novo vício, uma nova moda.

 

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ESTÁ NA MODA

decepar cabeças através da retórica. Contudo, a barbárie do acto conduz à consequência inerente à causa, pois por cada velha cabeça decepada nasce, pelo menos, uma cabeça nova – a Hidra de Lerna, recordam-se? – e tudo muda para que tudo fique na mesma. A retórica é um monstro ignóbil, mas pode ser combatido.

 

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O SILÊNCIO

diz muito sobre a pessoa que o assume. Gosto de pessoas que se remetem ao silêncio e nos influenciam com a sua discrição, não se dedicando nunca a caricaturar a época em que vivem com o ruído da boçalidade. O silencioso detecta a chalaça à distância e rapidamente coloca os pontos nos is. Por vezes, escreve livros que vale a pena ler. Malogradamente, são livros desconhecidos, isentos de uma construção crítica literária. Na verdade, os próprios livros acabam por se encostar a outros universos de silêncio, nas estantes das casas, nas prateleiras das livrarias, nos túmulos das bibliotecas.

 

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A INCOMPETÊNCIA

de críticos e editores perpetua pequenas hidras de lerna na mentalidade colectiva dos leitores. Afinal, o que leva este editor a não querer publicar um bom livro e o que incita aquele crítico a efabular elogios a um mau livro? Multiplicam-se os episódios de consagração dos vaidosos e desvanecem-se as possibilidades redentoras dos silenciados.

 

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O TEMPO

é uma arma avassaladora. É céu e é inferno, enquanto andamos pelo purgatório. Podia inventariar uma longa lista de soluções abertas à educação das mentalidades, mas não cairei na esparrela de ousar que domino e compreendo as circunstâncias que me rodeiam. O silêncio é a minha arma. A escrita e a leitura são a minha salvação porque há, pelo menos, uma certeza que me seduz: a literatura é a ferramenta da humanidade sábia.

Adília César, 

in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__285

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