A minha alma, segundo afirma aquele homem diabólico, jaz enterrada sob densas camadas de materialidade. Acredito. Mas ela está lá muito quieta, muito confortável, muito feliz. Para que hei-de eu desbastar, adelgaçar, e furar essas abóbadas da matéria, para que a minha alma se escape para as regiões tormentosas e aterradoras da espiritualidade? É uma coisa perigos, uma alma assim solta pelos ares, em companhia de espíritos... Não lhe parece?
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Blaubenren" - O maior meteorito encontrado na Terra (30Kg, Alemanha) |
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A
ENORMIDADE
dos
gestos maléficos da espécie humana, perdida no abismo de um mundo que a
rejeita. A água dá a vida, a água mata a vida. A criança bebe a água pura da
concha das mãos de sua mãe. O cão afoga-se com dois tijolos presos ao pescoço
pelo próprio dono. As mãos e as mãos, feitas de ossos, ligamentos, músculos,
pele. As mãos iguais e antagónicas. O cérebro comanda o corpo, o livre arbítrio
induz a filosofia do quotidiano à ética. Qual?
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OS
DIAS
passam
a correr, desenfreados, de um lado para o outro. Estão irremediavelmente longe
da linha do tempo e nem as frases repetidas nos ecos das notícias permitem a
interiorização satisfatória dos últimos acontecimentos. Também esses, os
acontecimentos do presente, se perdem. Para sempre? Não. Há uma criança que
nasce e tudo volta ao seu lugar. O medo cede à esperança.
*
A
MINHA ALMA
está
onde eu a coloquei: no pedestal da serenidade, dentro da casa de vidro. À
volta, dispus os acontecimentos não fatais perfeitamente alinhados de acordo
com a sua importância. E é este sigilo em redor a sussurrar: o meu coração é
uma faca de sangue que se enterra na manteiga ao ritmo de longas frases sem
sentido. É uma história que já ninguém quer ouvir. Para não desaparecer de vez
apoia-se nos cotovelos das rochas e chora essas dores submersas. As lágrimas
são vermelhas e riscam a minha face em sulcos de fogo líquido. Lento como o
sussurro que perdura no eco daquilo que sou. A serenidade estende-me os seus
braços líquidos e frescos, enlaça-me como se fosse um espírito manso, meigo,
primaveril. Como se fosse a minha mãe a dar-me de beber na concha das suas
mãos. E assim sobrevivo.
*
A
COMÉDIA HUMANA
dos
preguiçosos torna invisíveis as novas oportunidades de reflexão. As pessoas
vivem no caos do pensamento e não sabem onde se situa a linha entre a loucura e
a lucidez, entre a sombra e a luz, entre a morte e a vida, entre o corpo e o
espírito. As palavras e as imagens são diferentes na sua substância, embora a
um nível superior palavra e imagem sejam uma totalidade. A palavra
é a expressão de um sentido abstracto, é o espírito da imagem que tem esse
nome. A palavra acende o caos. Sensações, sentimentos, expectativas com nomes
próprios e intransmissíveis. A imagem como apêndice da palavra conduz o seu nome
até ao universo real. É difícil eliminar uma ideia recriada numa imagem porque
a criação devolve-a à vida, à realidade que conheço. A imagem é física, palpável,
mas pode ser uma ilusão se o imprevisível impedir o visível. O que é uma
percepção da realidade? O perigo dos oxímoros: faço um gesto e guardo esse
gesto numa imagem; continuo a fazer gestos e não os guardo; os gestos não
inscritos nas imagens são irreais por não existirem na realidade, pertencendo,
inevitavelmente, ao passado? O meu corpo é uma realidade irreal. O meu espírito
é uma irrealidade real. A imagem é um drama do meu inconsciente elevado a uma
consciência absoluta daquilo que sinto, o conhecimento interior que possuo
naquele preciso momento e que te quero mostrar. Estamos perto do fim e já não
restam imagens das lembranças, apenas sobraram as palavras.
Olha-me.
Eu estou a revelar-te o que vejo, o que sinto, o que sei. Consegues ver?
Adília César,
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__280