Assim a ciência vai usurpando as mais preciosas
funções da poesia. São agora os astrónomos, e não os poetas, que penduram
sonhos na Lua e nos raios das estrelas. E é um velho filósofo que se torna
bucólico e que celebra as glórias da rosa.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in
Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Foto de William Wild |
*
PARECIA
um
sonho. A cidade, um lugar onde eu já estive. A montra suja está decorada com
sapatos fora de moda e alguns almanaques Borda D’Água amarelados. A humidade
ondulou as páginas do tempo, arruinou os caminhos. Sei que já estive naquele
lugar, é tão nítida a percepção de estar dentro de um filme exibido na tela do
mundo. Contudo, nada será como dantes. Agora é um sonho de gente encapuçada e
ninguém recorda com a veemência necessária, porque ainda está ali. Acordo.
Continuo por dentro do sonho e volto a adormecer. Os meus sapatos velhos ficam
presos na lama e eu descalço-os, abandono tudo e imagino que há uma porta que
se abre para um mundo morno. Sei que esse mundo existe porque conheço pessoas
reais – a mãe, o irmão, as filhas, os netos, o companheiro – a quem ofereço tanto
amor sem qualquer máscara. Olho-os nos olhos, sem filtros. Na rua, as máscaras
negras escondem as más caras que compõem o teatro do quotidiano.
*
SOMOS
TODOS
estrelas,
rosas e outros rescaldos presos numa rede tecida pela vaidade ou a discrição de
cada um. Parece não haver meio termo, parece não haver bom senso, parece não
haver comunicação. Na verdade, os avatares não se entendem entre si: o que uns
emitem não é entendível pelos outros que recepcionam. Partilhar, gostar,
comentar… e o que resta, na maior parte das vezes, é um pigarro desagradável na
garganta com sabor a morte. A morte noticiada e partilhada. Constato que a
morte está na moda, tendo sido iniciada uma muito consistente e elaborada
necrologia facebookiana, que atravessa vários níveis de dificuldade e requinte
nos inúmeros obituários à disposição do freguês: a notícia mais ou menos
assolapada da morte de um familiar, bem como a memória recorrente do seu
desaparecimento, ano após ano; a desconstrução exaustiva da morte trágica de
uma figura pública, bem como as tentativas patéticas de fazer humor com a dor
alheia. Se o primeiro nível de actividade necrológica não me choca e até
colaboro no processo enviando sentidas condolências, já o segundo nível deste
jogo perigoso deixa-me em estado de náusea emocional: explora-se a morte de uma
figura pública até à exaustão, até ao ridículo, até à indecência de não se
respeitar a dor de uma família quando morre um filho. Mas afinal, qual sofre
mais, a família mediática ou a família incógnita? Isto é uma não-questão
(que desconforto)! Vejo uma frágil humanidade nesta inclemência virtual e tento
aprender qualquer coisa de útil para os poucos anos que ainda me restam. Não
sendo possível renegar a rede (os processos virtuais para a comunicação atingiram-nos
como um meteorito disfarçado de cometa, mas fazem parte da vida contemporânea e
terão alguns benefícios) parece-me que um perigo maior reside, precisamente, na
adoração pagã das múltiplas janelinhas virtuais do nosso dia-a-dia.
*
POR MUITO
que
me custe, antes de partilhar algo de que me arrependa mais tarde, penso
primeiro, para avaliar o meu impulso. Uso os meus filtros. Na rede social onde
os "amigos" são, quase todos, desconhecidos entre si, o que significa
essa "amizade" para cada um de nós? A rede pode ser muita coisa, mas
não é a cura para as nossas pequenas-grandes tragédias interiores. E o ruído
virtual é tão incomodativo como uma sirene de ambulância que nos sobressalta de
madrugada. Continuo a usar os meus filtros e vou desistindo de criaturas que
gritam, esperneiam, agridem, desabafam imundices, lugares comuns e auto-retratos
flagelados pela realidade.
Abandono-as
porque ignorá-las não é suficiente.
Fazer
de conta que não vejo não é suficiente.
Tentar
ser tolerante com a oferenda inquinada não é suficiente.
Ou então são elas que me abandonam.
*
E
calo-me.
Ainda estou ali, presa na teia, mas a serenidade que ofereço a mim mesma é real
e quase libertadora, sem chicotes de demagogia. O silêncio é o meu botão de
pânico. Porque sei que não
falar não é o mesmo que estar calada.
O silêncio assumido é uma apoteose do pensamento,
é a minha rosa sem espinhos. E leio poesia filosófica. A poesia é o meu botão
de vida.
Adília César,
https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__275