A ciência
realmente só tem alcançado tornar mais intensa e forte uma certeza:
- a velha certeza socrática da nossa
irreparável ignorância.
De cada vez
sabemos mais - que não sabemos nada.
Eça de Queirós
(1845-1900),
in Notas
Contemporâneas (1909, obra póstuma)
Niymas Najafov, "A Conversação", 2013 |
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A
DEMAGOGIA
é
uma doença assintomática e conduz o ser humano a um estado letal de ignorância
e até de indiferença perante o mundo. Estamos todos doentes, mas ninguém o
admite. Uma quantidade enorme de informação rodeia-nos por todos os lados, é
como um oceano de plástico. Está ali por via da nossa própria insensatez, mas
parece não nos dizer respeito. Compadecemo-nos dos pobres animais marinhos
presos no lixo que lançamos às águas, vistos com os nossos olhos lacrimosos no
documentário televisivo, e depois comemos uma bela sandes muito bem embrulhada
em papel de alumínio e acondicionada dentro de um saco de plástico, enquanto
molhamos os pés na babuja da praia mais próxima, para onde nos deslocámos no
nosso BMW a gasóleo e gastamos meia hora, às voltas, à procura de um sítio para
estacionar. É só esta vez, pensamos. E o mar, tão puro na relação que
estabelece com todas as criaturas que serpenteiam por entre as algas, ainda
cumpre a sua intenção de vida: o vai e vem das marés é isso mesmo, a oscilação
da sua luta inglória nas correntes de vida, de morte e de demagogia. Quais serão
as correntes mais fortes? Siza Vieira disse que “nenhuma árvore ou pedra
arrancada à natureza nos é restituída”. Eu diria que o planeta é um parceiro de
peso neste desumano jogo de xadrez: a causa e o seu efeito, tão conhecidos e ao
mesmo tempo tão ignorados em cada jogada.
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A
VIDA
tem
os seus próprios direitos, mas nem sempre deles goza. Cometem-se crimes, mas o
que mais impera são as absolvições. Tudo é perdoado, tudo é passível de um
qualquer esquema de subterfúgios lamechas. É só esta vez, pensou ela
quando ele lhe deu a primeira bofetada. Mas ele gostou da sensação que o ciclo
de violência lhe soprou ao ouvido: a mão que bate é a mão que acaricia e limpa
as lágrimas. É a mesma mão feita de osso, sangue, força bruta e adrenalina. Ela
também gostou desta espécie de desamor, porque a face é feita de medo e o medo
alimenta-se do ensimesmamento da rotina diária do crime e da sua inevitável
absolvição. Ela acredita no seu precioso pensamento de luxo e adorna o seu
pescoço, a sua garganta, a sua voz com um colar de pérolas feito de ideias
nocivas: é melhor ter uma desilusão do que não ter coisa nenhuma.
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O
SER HUMANO
está
a transformar-se no seu maior inimigo. Somos indivíduos predadores em relação a
todas as outras criaturas vivas, o que quer dizer que também somos
auto-destrutivos. Lutamos pela terra, pela água, pela comida, pelos valores em
que acreditamos. A cidadania tem muitos apelidos: somos feitos de sonhos,
queremos ir mais rápido e mais longe, possuir mais coisas: equipamentos mais
eficientes e gagdets com mais funcionalidades, comida rápida,
medicamentos para curar todas as doenças, objectos essencialmente inúteis para
usar e deitar fora. Não olhamos a meios para atingirmos os fins – corrupção
política, destruição planetária e desigualdade social em larga escala. Mais,
mais, mais. E se o futuro for mais do mesmo, não haverá um ponto
sem retorno em que a única velocidade seja, inevitavelmente, a da câmara lenta?
Menos, menos, menos, por favor. Nós, os humanos e a nossa irreparável
ignorância num mar de destruição.
*
define
cenários possíveis, prováveis, desejáveis. Hoje em dia somos todos peritos. Cada
um invoca o seu oráculo: uns, consultam a sua divindade favorita e outros, lêem
a legenda curta que aparece a correr na parte inferior ou superior do ecrã da
televisão durante a emissão do telejornal. Qual será a informação mais fiável? Só
o futuro o dirá.
Vamos
ficar todos bem?
Isto vai piorar e muito?
Vem
depressa, espírito (o futuro não tem corpo), ajuda-me a contar essa história.
A
invocação do real é erro, pavor. E mortalidade suspensa sobre as nossas
cabeças. A ciência como cura para todos os males, enfiada na nossa carne
através do buraco feito por uma agulha.
É mesmo isso que querem? Um deplorável mundo novo?
Na
verdade, faltam poucos meses para acontecer a melhor coisa deste ano: o fim
dele. E depois, na medida do possível, tudo irá recomeçar num novo ciclo
temporal mergulhado no mesmo molho agridoce. Mais do mesmo. E ainda assim, não
escaparemos ilesos.
Adília César, in https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__265