Nada facilita mais uma civilização que um
bom clima.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
*
O
SOM
predestina-se
ao desprezo. Não ao ruído de fundo, sim à escuta. Estas teias de pequenos
massacres diários cansam-me. E de repente, na cidade saturada de sons, há
qualquer coisa que se sobrepõe ao resto: é a mansidão do bando de pardais que
se recolhe na folhagem fresca. Agora mesmo: olho, mas nada vejo, apenas sinto o
essencial. O coração é o ouvido absoluto da existência.
*
A
MÚSICA CLÁSSICA
tem
uma relação imediata com a saudade que sinto pelo meu pai, essa linha efémera
de água a brilhar ao sol, ao alcance da melodia da vida. E depois outras gotas
vão passando pelo mesmo lugar, dando de beber à sede das memórias da infância.
Não é uma tristeza verdadeira, nem sequer um desalento perante a respiração da
ausência. A morte do meu pai aconteceu há muito tempo. Hoje, ele é este leve
peso interior, como se fosse um acorde perfeito que se ouve com o coração. O
andamento lento da vida perante a inevitabilidade da morte. Há vida para além
de tudo o que nos atormenta.
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O
RITMO
incentiva
a velocidade até ao infinito. Um calendário não mede apenas a passagem do tempo.
Afinal, os dias são provisórios, efémeros, tornam-se passado, mas também são o
futuro comprometido com a tragédia humana. Que fazer com os dias? Têm assim
tanta importância? Sim, os dias são meus, guardo-os amorosamente na carta sem
princípio nem fim que escrevo aos meus herdeiros. Quero difundir a ideia banal,
mas tão verdadeira, sobre a urgência de ter opinião formada sobre as
vicissitudes que transformaram o tecido social, no sentido de cada um optar por
uma atitude cívica perante si e perante os outros. Hoje, mais do que nunca, não
há "bolhas" individuais: o colectivo impera nestes dias tão
definitivos.
*
O
TEMPO
passa
por nós ou nós levamos o tempo connosco: há duas velocidades (podendo ser um
processo rápido ou lento), mas não há duas medidas: é preciso decidir, logo
desde o início, que tipo de vida queremos viver. A obrigação de ter um espírito
positivo, a toda a hora, é tão entediante como um ramo de flores de plástico na
montra de um talho. Num mundo onde nos atiram com uma enjoativa diversidade de
mensagens positivas, sublimares e explícitas, pensar sobre a depressão é ainda
um preconceito; e admiti-la parece constituir uma fraqueza do próprio espírito.
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O
CLIMA
predispõe-se
a amuos e incongruências. As estações do ano exibem visíveis devaneios, bem
diferentes de outros tempos. Este fenómeno climatérico influencia, em larga
escala, as mentes caprichosas dos criadores de canções populares. Até a fadista
Mariza canta Quem me dera/ abraçar-te no outono, verão e primavera/ quiçá
viver além uma quimera/ herdar a sorte e ganhar teu coração. O inverno
desapareceu da equação amorosa, vá-se lá saber porquê. Matias Damásio, o autor
da canção, provavelmente não gosta do inverno, estando em perfeita sintonia com
Eça de Queirós, quanto este afirma: Nada facilita mais uma civilização que
um bom clima.
Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__263