sábado, 14 de dezembro de 2019

OS TEUS OLHOS, ISABEL*


Ler os livros de Isabel da Nóbrega é a única forma de lhe fazer justiça. É vê-la como ela se contou, e não como outros, por amor, por desejo de renascimento, por mágoa ou por leviandade a contaram. Esses outros sobre os quais ela escreveu: “Oh, esta alegria de não estarmos sós.”

Joana Emídio Marques (Observador, 30 de Maio de 2015)

As musas da literatura portuguesa têm sido raras na vida dos escritores e poetas. E são, provavelmente, uma espécie em vias de extinção. Hoje, mais do que nunca, as estrelas sedutoras que suscitam inveja e fascínio são outras: jogadores de futebol, personagens das telenovelas e pouco mais.


Isabel da Nóbrega

Mas os teus olhos no teu belo rosto Isabel, tão admirados por João Gaspar Simões e José Saramago. Serão os teus olhos como os de Medusa, a górgona mitológica que petrifica quem os olha, na sugestão deixada por João Gaspar Simões? E como esquecer os teus olhos mágicos que parecem perscrutar as almas por dentro dos corpos, recordando Blimunda no romance Memorial do Convento, escrito por José Saramago?

Eis aqui apresentados dois homens de peso na literatura portuguesa, dois companheiros entrelaçados na tua vida: João Gaspar Simões, entre 1954 e 1968; e José Saramago, entre 1970 e 1986. E queria dizer-te, Isabel, mas que homens portentosos eles foram no cenário literário e no teatro tua vida… João Gaspar Simões (1903-1987) possui uma obra imensa nos campos do romance, teatro, biografia e história literária, ensaio e crítica literária, edição e estudos introdutórios, tradução. É inegável a sua importância, por exemplo, enquanto primeiro biógrafo e primeiro editor (com Luís de Montalvor) de Fernando Pessoa. José Saramago (1922-2010), escritor galardoado com o Prémio Nobel da Literatura em 1998, entre outros prémios, e escreveu romances, crónicas, peças teatrais, contos, poesia, diários e memórias, literatura para a infância e literatura de viagens.

E escreve João Gaspar Simões, implicitamente, no romance As Mãos e as Luvas publicado em 1975, pouco depois de tu, Isabel, o teres abandonado (na altura, já vivias com o ainda desconhecido jornalista e tradutor José Saramago): “Sim, essa arma, digo bem, que ela sabia constituir, no arsenal das suas seduções, a mais mortífera das suas armas: os olhos, precisamente.” Neste livro, surge a personagem Tininha, uma mulher promíscua, colecionadora de amores fugazes. O moralismo expresso no romance, alegadamente pleno de referências maldosas contra José Saramago e Isabel da Nóbrega, evidencia o quanto João Gaspar Simões estaria incomodado com a situação. Tu sabias, Isabel, mas nunca falaste em público sobre estas referências à tua pessoa.



E escreve José Saramago, explicitamente, na dedicatória da primeira edição do romance Memorial do Convento, publicado em 1982: “À Isabel, porque nada se perde ou repete, porque tudo cria e renova.” Palavras densas, sentidas e consentidas.  Também a personagem principal Blimunda tem os teus lindos olhos, Isabel, e o nome que escolheste para ela. Mas mais tarde, José Saramago apagará o teu nome da dedicatória, dedicando o mesmo romance a outra mulher. Tu sabias, Isabel, mas nunca falaste em público sobre esta tentativa injusta de obliteração, apesar de ele ter expressado publicamente a importância que tiveste no desenvolvimento de José Saramago enquanto escritor: “Esta mulher pareceu-me mais do que minha mãe.”


A tua vida é um almofariz perpétuo que pisa, mói, reduz. Assim é o culto do amor aos mortos, ao amor negro, aos mortos negros num desprezado eco, como uma abstracção simples da luz, uma ausência. Não permitas que eles se vão embora dessa incompreensão escura, do negrume. A mortalha embebida no perfume das especiarias faz de conta que conhece a decoração do lugar e uiva. Energia dos vivos, mais aguda do que a mágoa. Parece um lamento nas frestas das nuvens, um caminho doce para carruagens douradas. Ecos de outros tempos e outras vidas. Canela e anis estrelado, memória e sonho, cânfora. Imagem nítida de todas as partículas fúnebres que bebem o rio de especiarias dos corações deles ao teu pensamento.

Já morreram os teus homens, Isabel. As infâmias plantadas nos seus escritos não deram fruto, eram sementes de desilusão, finitas e arrogantes. O tempo dessas sementes voltou de novo à casca do passado e por lá secaram. Pois a tua maior arma é um misto de amor-próprio e inteligência, uma liquidez verde derramada ao fundo dos teus olhos, uma marca d’água, uma aguarela. Ah, mas os teus olhos, Isabel, os teus olhos ainda vivos cravados nos nossos. Fica tranquila, ainda não foste esquecida. Estamos aqui, dispostos a ler-te.

Isabel da Nóbrega na capa da revista TABU em 2009

*Isabel da Nóbrega (pseudónimo de Maria Teresa Guerra Bastos Gonçalves) é uma escritora portuguesa. Nasceu em Lisboa a 26 de Junho de 1925 (tem 94 anos). Trabalhou em teatro, rádio e televisão, escreveu milhares de crónicas. Ganhou vários prémios, entre os quais o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores (2008) e o Prémio Femina por Mérito na Literatura (2011). Foi ainda condecorada com a Grande-Oficial da Ordem do Mérito (2000) e a Grande-Oficial da Ordem da Liberdade (2011).

Adília César
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