Ler
os livros de Isabel da Nóbrega é a única forma de lhe fazer justiça. É vê-la
como ela se contou, e não como outros, por amor, por desejo de renascimento,
por mágoa ou por leviandade a contaram. Esses outros sobre os quais ela
escreveu: “Oh, esta alegria de não estarmos sós.”
Joana Emídio Marques (Observador, 30 de Maio de 2015)
As musas da literatura portuguesa têm sido
raras na vida dos escritores e poetas. E são, provavelmente, uma espécie em
vias de extinção. Hoje, mais do que nunca, as estrelas sedutoras que suscitam
inveja e fascínio são outras: jogadores de futebol, personagens das telenovelas
e pouco mais.
Isabel da Nóbrega |
Mas os teus olhos no teu belo rosto Isabel,
tão admirados por João Gaspar Simões e José Saramago. Serão os teus olhos como
os de Medusa, a górgona mitológica que petrifica quem os olha, na sugestão
deixada por João Gaspar Simões? E como esquecer os teus olhos mágicos que
parecem perscrutar as almas por dentro dos corpos, recordando Blimunda no
romance Memorial do Convento, escrito por José Saramago?
Eis aqui apresentados dois homens de peso
na literatura portuguesa, dois companheiros entrelaçados na tua vida: João
Gaspar Simões, entre 1954 e 1968; e José Saramago, entre 1970 e 1986. E queria
dizer-te, Isabel, mas que homens portentosos eles foram no cenário literário e
no teatro tua vida… João Gaspar Simões (1903-1987) possui uma obra imensa nos
campos do romance, teatro, biografia e história literária, ensaio e crítica
literária, edição e estudos introdutórios, tradução. É inegável a sua
importância, por exemplo, enquanto primeiro biógrafo e primeiro editor (com
Luís de Montalvor) de Fernando Pessoa. José Saramago (1922-2010), escritor galardoado
com o Prémio Nobel da Literatura em 1998, entre outros prémios, e escreveu
romances, crónicas, peças teatrais, contos, poesia, diários e memórias,
literatura para a infância e literatura de viagens.
E escreve João Gaspar Simões,
implicitamente, no romance As Mãos e as Luvas publicado em 1975, pouco
depois de tu, Isabel, o teres abandonado (na altura, já vivias com o ainda
desconhecido jornalista e tradutor José Saramago): “Sim, essa arma, digo
bem, que ela sabia constituir, no arsenal das suas seduções, a mais mortífera
das suas armas: os olhos, precisamente.” Neste livro, surge a personagem
Tininha, uma mulher promíscua, colecionadora de amores fugazes. O moralismo
expresso no romance, alegadamente pleno de referências maldosas contra José
Saramago e Isabel da Nóbrega, evidencia o quanto João Gaspar Simões estaria
incomodado com a situação. Tu sabias, Isabel, mas nunca falaste em público
sobre estas referências à tua pessoa.
E escreve José Saramago, explicitamente,
na dedicatória da primeira edição do romance Memorial do Convento, publicado em
1982: “À Isabel, porque nada se perde ou repete, porque tudo cria e renova.”
Palavras densas, sentidas e consentidas. Também a personagem principal Blimunda tem os
teus lindos olhos, Isabel, e o nome que escolheste para ela. Mas mais tarde, José
Saramago apagará o teu nome da dedicatória, dedicando o mesmo romance a outra
mulher. Tu sabias, Isabel, mas nunca falaste em público sobre esta tentativa injusta
de obliteração, apesar de ele ter expressado publicamente a importância que
tiveste no desenvolvimento de José Saramago enquanto escritor: “Esta mulher
pareceu-me mais do que minha mãe.”
A tua vida é um almofariz perpétuo que
pisa, mói, reduz. Assim é o culto do amor aos mortos, ao amor negro, aos mortos
negros num desprezado eco, como uma abstracção simples da luz, uma ausência.
Não permitas que eles se vão embora dessa incompreensão escura, do negrume. A
mortalha embebida no perfume das especiarias faz de conta que conhece a
decoração do lugar e uiva. Energia dos vivos, mais aguda do que a mágoa. Parece
um lamento nas frestas das nuvens, um caminho doce para carruagens douradas.
Ecos de outros tempos e outras vidas. Canela e anis estrelado, memória e sonho,
cânfora. Imagem nítida de todas as partículas fúnebres que bebem o rio de
especiarias dos corações deles ao teu pensamento.
Já morreram os teus homens, Isabel. As
infâmias plantadas nos seus escritos não deram fruto, eram sementes de
desilusão, finitas e arrogantes. O tempo dessas sementes voltou de novo à casca
do passado e por lá secaram. Pois a tua maior arma é um misto de amor-próprio e
inteligência, uma liquidez verde derramada ao fundo dos teus olhos, uma marca
d’água, uma aguarela. Ah, mas os teus olhos, Isabel, os teus olhos ainda vivos cravados
nos nossos. Fica tranquila, ainda não foste esquecida. Estamos aqui, dispostos
a ler-te.
Isabel da Nóbrega na capa da revista TABU em 2009 |
*Isabel da Nóbrega (pseudónimo de Maria Teresa Guerra Bastos
Gonçalves) é uma escritora portuguesa. Nasceu em Lisboa a 26 de
Junho de 1925 (tem 94 anos). Trabalhou em teatro, rádio e televisão, escreveu
milhares de crónicas. Ganhou
vários prémios, entre os quais o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade
Portuguesa de Autores (2008) e o Prémio Femina por Mérito na Literatura (2011).
Foi ainda condecorada com a Grande-Oficial da Ordem do Mérito (2000) e a
Grande-Oficial da Ordem da Liberdade (2011).
Adília César
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