Muitos dias de silêncio são necessários
para
recuperar da futilidade das palavras.
Wu Hsin
Fotografia surrealista de Fernando Lemos |
Gosto do silêncio e sei que é difícil
escutar o silêncio em mim. O escritor e explorador Erling Kagge também o
aprecia e sugere que o silêncio é o verdadeiro luxo da contemporaneidade: um
tesouro a descobrir.
Também gosto das palavras e sei que temos
todas as palavras pensadas, ditas e escritas em nós. Comunicamos através de um
discurso que reflecte o ensimesmamento da nossa racionalidade, ou seja, o
idioma do nosso pensamento, a necessidade de comunicar algo aos outros, esse
mundo interior e privado. Comuniquemos, pois, em liberdade, através dos
diferentes modos de expressão que temos ao dispor. Ora, a mente ocupa-se do processamento
contínuo dos pensamentos, não sendo possível não pensar. Com os
pensamentos e pelos pensamentos, a nossa mente aceita que o mundo onde vivemos
é criado por nós: os desejos íntimos, a satisfação desses desejos, o medo de sucumbir,
a vergonha de sermos julgados pelos outros, ou, pelo contrário, a cegueira face
a todo este processo de escrutínio vital.
No caso do escritor, a paisagem mental
alterna entre planos paralelos de verdade e mentira, ou melhor dizendo e de uma
forma mais justa, a versão discursiva que chega ao leitor é a vida ficcionada
do escritor: o romance, o conto, o poema. Saberá o escritor que é
escritor? Conseguirá ele ver e escrever algo que os outros não tenham ainda
visto nem escrito? E qual é a percepção dos leitores em relação às mesmas
assumpções de valor intrínseco do criador?
Muitos escritores reflectem sobre a
escrita, tentando esclarecer as suas próprias perplexidades. Por exemplo, Hjalmar
Söderberg (1869-1941) citava os poetas como instrumentos com que a época toca a sua melodia, as
harpas eólicas com que o vento canta (in O Doutor Glas). Também Agustina Bessa-Luís
(1922-2019) alude à poesia e aos poetas: a poesia, não acredito que seja
esse estado nervoso tão doente e agitado. Alguns poetas parece que lhes
arrancam os dentes ou deliram numa meditação tão assombrosa com coisas que nos descrevem
o amor e a morte, mas não sabemos se se lhes parecem (in Dicionário Imperfeito).
Não sei a
que poetas ambos se referiam, mas é bem verdade que estes seres criativos – os
poetas – parecem pessoas estranhas, distanciadas da sua época e aniquiladas
pela boçalidade dos dias, pela incompreensão e pela indiferença dos outros que
não os entendem nem admiram. Acredito que pelo menos alguns deles sejam poetas
genuínos. Também existe outro tipo de criaturas: as que se definem como poetas,
de ego superlativo, maiores, melhores, excelentes, indigestos, fúteis. São
tantos os poetas, tantos os poemas, tantos os adereços, são tantas as festas,
tantas as gratulações, tantas as quimeras. Tantos os vazios: esses intervalos
entre as palavras são o que eles escrevem melhor.
Sim,
disseram-te que escreveste um poema bonito. Mas repara: essa beleza não é
fundamental, não vem de dentro nem se vê por fora. A beleza é um estado e não
uma característica, é uma condição do ser, da expressão de qualquer coisa
estética muito ampla. A imagem do belo, essa misteriosa matriz. Não sou eu, não
és tu, é a sintonia peculiar da abstracção dessa palavra, uma imagem com
múltiplos sentidos visíveis e invisíveis, uma oração quase sagrada. Que belo é
alcançar o inalcançável... A melancolia do papel riscado por cada verso. Mas
apesar de tudo o que te é dado ver e sentir, por favor entende de uma vez por
todas que um poema bonito não faz um grande poeta. Escrever um poema não é bordar uma toalha de mesa. E dar um título à minha
tragédia apenas evidenciará o óbvio. Na verdade, ninguém quer saber do escuro
ou dos esqueletos que dançam nos cantos da casa. O melhor será varrer os
despojos para debaixo do tapete: alfinetes, vozes de crianças, flores de
compaixão que sabem a chamas. Ninguém os verá, mas eu sei que os fantasmas
estão ali, cobertos com fatiotas de ironia. E no apogeu da festa, tocar
pequenos clarins de dor para anotar na consciência uma doce tristeza na medida
justa. Amanhã é um outro dia que poderá não chegar. É preciso preservar o
manuscrito ainda inédito: isso é o poema, mesmo que eu ou tu lhe chamemos
outro nome. E se eu não for capaz de o escrever, recolher-me-ei a pensamentos
mais profundos, porque a futilidade é uma doença e muitos
dias de silêncio serão necessários para recuperar da futilidade das minhas e
das tuas palavras.
Adília César