sábado, 19 de outubro de 2019

DA FUTILIDADE DOS POETAS



Muitos dias de silêncio são necessários
para recuperar da futilidade das palavras.


Wu Hsin

Fotografia surrealista de Fernando Lemos

Gosto do silêncio e sei que é difícil escutar o silêncio em mim. O escritor e explorador Erling Kagge também o aprecia e sugere que o silêncio é o verdadeiro luxo da contemporaneidade: um tesouro a descobrir.

Também gosto das palavras e sei que temos todas as palavras pensadas, ditas e escritas em nós. Comunicamos através de um discurso que reflecte o ensimesmamento da nossa racionalidade, ou seja, o idioma do nosso pensamento, a necessidade de comunicar algo aos outros, esse mundo interior e privado. Comuniquemos, pois, em liberdade, através dos diferentes modos de expressão que temos ao dispor. Ora, a mente ocupa-se do processamento contínuo dos pensamentos, não sendo possível não pensar. Com os pensamentos e pelos pensamentos, a nossa mente aceita que o mundo onde vivemos é criado por nós: os desejos íntimos, a satisfação desses desejos, o medo de sucumbir, a vergonha de sermos julgados pelos outros, ou, pelo contrário, a cegueira face a todo este processo de escrutínio vital.

No caso do escritor, a paisagem mental alterna entre planos paralelos de verdade e mentira, ou melhor dizendo e de uma forma mais justa, a versão discursiva que chega ao leitor é a vida ficcionada do escritor: o romance, o conto, o poema. Saberá o escritor que é escritor? Conseguirá ele ver e escrever algo que os outros não tenham ainda visto nem escrito? E qual é a percepção dos leitores em relação às mesmas assumpções de valor intrínseco do criador?

Muitos escritores reflectem sobre a escrita, tentando esclarecer as suas próprias perplexidades. Por exemplo, Hjalmar Söderberg (1869-1941) citava os poetas como instrumentos com que a época toca a sua melodia, as harpas eólicas com que o vento canta (in O Doutor Glas). Também Agustina Bessa-Luís (1922-2019) alude à poesia e aos poetas: a poesia, não acredito que seja esse estado nervoso tão doente e agitado. Alguns poetas parece que lhes arrancam os dentes ou deliram numa meditação tão assombrosa com coisas que nos descrevem o amor e a morte, mas não sabemos se se lhes parecem (in Dicionário Imperfeito).

Não sei a que poetas ambos se referiam, mas é bem verdade que estes seres criativos – os poetas – parecem pessoas estranhas, distanciadas da sua época e aniquiladas pela boçalidade dos dias, pela incompreensão e pela indiferença dos outros que não os entendem nem admiram. Acredito que pelo menos alguns deles sejam poetas genuínos. Também existe outro tipo de criaturas: as que se definem como poetas, de ego superlativo, maiores, melhores, excelentes, indigestos, fúteis. São tantos os poetas, tantos os poemas, tantos os adereços, são tantas as festas, tantas as gratulações, tantas as quimeras. Tantos os vazios: esses intervalos entre as palavras são o que eles escrevem melhor.

Sim, disseram-te que escreveste um poema bonito. Mas repara: essa beleza não é fundamental, não vem de dentro nem se vê por fora. A beleza é um estado e não uma característica, é uma condição do ser, da expressão de qualquer coisa estética muito ampla. A imagem do belo, essa misteriosa matriz. Não sou eu, não és tu, é a sintonia peculiar da abstracção dessa palavra, uma imagem com múltiplos sentidos visíveis e invisíveis, uma oração quase sagrada. Que belo é alcançar o inalcançável... A melancolia do papel riscado por cada verso. Mas apesar de tudo o que te é dado ver e sentir, por favor entende de uma vez por todas que um poema bonito não faz um grande poeta. Escrever um poema não é bordar uma toalha de mesa. E dar um título à minha tragédia apenas evidenciará o óbvio. Na verdade, ninguém quer saber do escuro ou dos esqueletos que dançam nos cantos da casa. O melhor será varrer os despojos para debaixo do tapete: alfinetes, vozes de crianças, flores de compaixão que sabem a chamas. Ninguém os verá, mas eu sei que os fantasmas estão ali, cobertos com fatiotas de ironia. E no apogeu da festa, tocar pequenos clarins de dor para anotar na consciência uma doce tristeza na medida justa. Amanhã é um outro dia que poderá não chegar. É preciso preservar o manuscrito ainda inédito: isso é o poema, mesmo que eu ou tu lhe chamemos outro nome. E se eu não for capaz de o escrever, recolher-me-ei a pensamentos mais profundos, porque a futilidade é uma doença e muitos dias de silêncio serão necessários para recuperar da futilidade das minhas e das tuas palavras.

Adília César

sábado, 5 de outubro de 2019

DA POESIA NA INFÂNCIA


Anna é linda. Ela é linda e isso basta-me.
O sol bate na casa amarela dela, é quase como um sinal de Deus.
(Jimmy, 5 anos de idade)


Caligrafia de Fep

O pequeno Jimmy deambula pelo espaço. É visível um vazio expressivo sinistro, um vagar anestesiado, enquanto recita um poema. Lisa Spinelli, a sua educadora de infância, escreve de forma compulsiva cada um dos versos, ditos numa linha melódica de uma nota só, num caderno vagamente destroçado que carrega consigo para toda a parte. Nesse caderno está escrevinhada toda a ânsia de Lisa em ser poetisa: insinuações de uma escrita pretensamente poética que não convence ninguém. Mas os poemas de Jimmy são como pequenas luzes que dão vida a esse caderno e a mulher torna-se obsessiva na sua missão de salvar o talentoso menino da banalidade da vida que o espera: crescer, tornar-se adulto, ganhar a vida, ter uma família; e depois morrer, como de costume. Lisa não consegue submeter-se aos valores práticos da sociedade em que ambos se inserem e de um modo doentio organiza uma sequência de eventos manipulatórios em torno das pessoas com quem convive, inclusive a família de Jimmy, para salvar a genialidade rara da criança, a qualquer custo, uma vez que ela acredita que a sociedade tudo fará para a esmagar. A obsessão vai demasiado longe e Lisa rapta Jimmy, levando-o a passar algum tempo num ambiente de comunhão com a natureza, junto a um lago, numa tentativa de incentivar a criação poética do menino. Mas ele fica assustado e só quer voltar para casa. Quando a polícia chega para o resgatar, Jimmy é colocado sozinho no carro de patrulha e as últimas palavras que se ouvem são dele:
- Tenho um poema. Tenho um poema! Mas ninguém ouve o seu poema. É o princípio do fim preconizado por Lisa.

- Que belo argumento para um filme, de uma complexidade psicológica vibrante, diriam os leitores desta crónica. De facto, a ideia deste argumento pertence a Sara Colangelo que realizou o filme The Kindergarten Teacher, pelo qual recebeu o prémio de melhor realização no Festival de Sundance, fazendo também parte da selecção oficial do Festival de Toronto. Foi estreado em Portugal em 2019 e o Cineclube de Faro exibiu-o no dia 1 de Outubro. A viagem perigosa, desesperada e metafórica, vivenciada pelos dois protagonistas, é uma chamada de atenção sobre as relações de poder do adulto educador para com a criança educanda, com fronteiras éticas sempre difíceis de definir. Do ponto de vista de Lisa, a frustração leva-a a executar sucessivos rituais obsessivos que a conduzirão, muito provavelmente e durante um tempo considerável, a uma penitenciária. Do meu ponto de vista de educadora de infância que desenvolve um projecto pedagógico de sensibilização à poesia, recuso submeter-me a angústias de antecipação dos destinos artísticos das crianças que acolho todos os dias. Vi o filme através dos olhos de uma educadora que privilegia a ambiência pedagógica proporcionadora de desenvolvimento artístico precoce nas crianças (função que exerço há mais de 30 anos). E depois, deixo-as ir: as crianças, as luzes poéticas, as raras genialidades. Talvez de vez em quando consiga despertar nessa grande infância que acolho há tanto tempo uma centelha potencialmente estética e isso basta-me.



O pequeno Jimmy tinha um tio que lhe lia poemas, o que foi crucial, decerto, para a criação dos seus versos. Ora Jimmy não simboliza a criança comum e a argumentista confere a essa personagem uma força e uma maturidade que raramente se vêem numa criança de 5 anos. Na verdade, os poemas ditos ao longo do filme foram na realidade escritos por três adultos - Kaveh Akbar, Dominique Townsend e Ocean Vuong – considerados grandes poetas contemporâneos. Mas o filme deixa-nos uma pista importante para que a poesia possa fazer parte da vida de qualquer pessoa: é imperioso guardar os versos da infância na pequena concha das mãos.

Deixo-vos um poema pensado e dito pelo Tiago P. de 4 anos, em contexto de jardim de infância. É um poema de intervenção social, de afirmação do eu poético e intensamente humano. A profundidade da reflexão surpreendeu-me pela simplicidade, pelo efeito emocional e estético que provocou em mim (não é essa uma das funções da poesia, a de assumir uma voz provocadora?). Hoje, o Tiago tem 7 anos e já não pensa em poesia. Os contextos familiar e escolar que o acolhem tendem a não valorizar esse tipo de competência. Mas este poema saiu de dentro dele, pertence-lhe e isso basta-me:

Santiago rima com Tiago.
Eu gosto dos nossos nomes que são poemas.
O meu poema é mais pequenino.
Mas eu sou mais do que o meu nome.
Sou mais do que um som: sou o Tiago.
(Tiago P., 4 anos)

Adília César
in https://issuu.com/danielpina1975/docs/algarve_informativo__221

Trailer do filme A Educadora de Infância:
https://www.youtube.com/watch?v=nRYKNn2FcmE

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