segunda-feira, 2 de outubro de 2017

7 UNIVERSOS DE POESIA | A. M. PIRES CABRAL

LÓGOS – Biblioteca do Tempo realizou uma série de entrevistas a 7 poetas portugueses, cujo questionário (com base em citações de autores universais) foi igual para todos excepto a última questão, mais pessoal. A particularidade deste projecto foca-se no facto de nenhum dos poetas contactados ter tido conhecimento das respostas dos seus pares. As 7 entrevistas serão posteriormente publicadas na revista LÓGOS – Biblioteca do Tempo.


LÓGOS: Paul Éluard disse (e cito de memória) que poeta é aquele que inspira, e não aquele que é inspirado. Ora, como parece haver mais “poetas” do que leitores de poesia, somos efectivamente um país de “inspirados”?

A.M.PIRES CABRAL: Todas as generalizações são arriscadas, e esta de Paul Éluard não é excepção. Deve tê-la escrito numa ocasião em que estava particularmente benevolente para com os colegas poetas, pois que desta forma lhes reconhece capacidade de inspirar, logo de iluminar os que os lêem. Mas a frase não esgota a verdade; mostra apenas uma das suas múltiplas faces. Isto vale por dizer que os poetas também têm de ser inspirados, seja lá isso o que for, venha de dentro ou venha de fora. Não constroem poemas se não forem picados pelo moscardo (em latim, oestrus), isto é, sem algum estímulo. Quanto a isso de Portugal ser um país de poetas, é um cliché como qualquer outro. Não vale a pena perder tempo com ele.

LÓGOS: “O que distingue um grande poeta é o facto de ele nos dizer algo que ninguém ainda disse, mas que não é novo para nós.” Partindo deste pressuposto de Ortega y Gasset, qual é o seu «ponto de partida» para a construção de um poema?

A.M.PIRES CABRAL: Esta frase implica uma das mais felizes definições dessa coisa irritantemente indefinível que é a poesia: arte de formular o já conhecido mas ainda não pronunciado. Quanto a pontos de partida para a construção de poemas, procuro efectivamente seguir a teoria de Ortega Y Gasset. E o poema pode materializar-se de múltiplas maneiras, ou seja, responder a múltiplos estímulos. Pode ser uma formiga que anda à sua vida no meio da erva. Pode ser uma súbita emoção, ou uma emoção já antiga mas que tem andado represada e de repente irrompe. Pode ser uma qualquer inquietação metafísica ou existencial ou mesmo mais rasteiramente social. Pode ser uma frase aleatória que de súbito se levanta e em que reconheço ‘eufonia’ bastante para justificar um poema, mesmo sem à partida saber sobre o que vai ser esse poema. Pode ser tudo. Só não pode ser, creio, o nada, o zero, o escuro total. Falo por mim, claro. 

LÓGOS: A maior verdade de um poeta é pôr o mundo a falar nos seus versos? É uma tragédia se não o entendem no seu tempo? Tem consciência da «utilidade» da sua poesia no mundo?

A.M.PIRES CABRAL: Não estabeleçamos limites para a verdade dos poetas. Nem chamemos ingratos aos nossos contemporâneos, caso passem distraídos pela nossa poesia. A poesia só tem utilidade para quem a usa – eis um truísmo que faz sentido repetir. Para algumas pessoas os meus versos podem ser úteis, se acaso lhes proporcionam um grãozinho de beleza ou de inquietação, que é aquilo que pretendo. Caso contrário, ser-lhes-ão inúteis. Que nenhum poeta se iluda: com todos acontece isto que disse a meu respeito, mais coisa menos coisa. Nenhum é porta-voz de verdades únicas, nem credor de reconhecimento universal. E nenhum se deve ralar se não é entendido no seu tempo. Entende-se ele a si próprio, e basta.

LÓGOS: “O poeta não exagera profundamente, mas amplamente” (Mattew Arnold). É tentado, como poeta, a destruir a linguagem para criar outra linguagem?

A.M.PIRES CABRAL: Um dos lados por que gosto de encarar a poesia, sim, é a sua aptidão para inovar e renovar a linguagem. Mas também acho que não é essa a sua única função, nem se calhar a mais importante, e uma poesia que se reduza a isso tem grandes probabilidades de cair num artificialismo oco, que é, parece-me, a negação da poesia. (Nesta resposta, vai um mea culpa serôdio por alguns desmandos que cometi e de que hoje não estou particularmente orgulhoso.)

LÓGOS: Nadine Gordimer disse que “A poesia é ao mesmo tempo um esconderijo e um altifalante”. Quanto da sua poesia é mistério e «leitura infinita»?

A.M.PIRES CABRAL: Sim, a poesia é as duas coisas: nela nos ocultamos, nela nos apregoamos. Mas tenho a preocupação de que a minha poesia não seja mistério. Pelo contrário, procuro que aclare mistérios, ou pelo menos os degrade em não-mistérios.

LÓGOS: “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo” (John Keats). Qual é a sua opinião sobre esta floresta de poetas que cresce imparável numa eterna falsidade de vozes?

A.M.PIRES CABRAL: A poesia actual é uma babel de vozes desencontradas, a maioria das quais sem qualquer razão para existir que não seja a vontade de os seus autores se fazerem ouvir. Que é lícita. Mas essa licitude gerou a ideia de que a poesia é algo cuja produção está ao alcance de qualquer um e de que qualquer ajuntamento de palavras é um poema. Se fosse possível eliminar noventa por cento da produção poética (de bons e maus poetas), a poesia só lucraria com isso. Mas, repito: respeite-se o direito que qualquer pessoa tem de escrever ‘a sua poesia’.

LÓGOS: A poesia é confissão? Ou uma filosofia do espírito que nomeia a vida?

A.M.PIRES CABRAL: A poesia é tanta coisa... Pode ser confissão, sim, e assenta-lhe bem essa vocação de confessionário: através dela dizemos coisas sobre nós que dificilmente diríamos doutra forma. Pode também ser explicação (a tal “filosofia que nomeia a vida”), por canhestra que seja... E pode ser muitas outras coisas. Melhor será dizer que não há poesia, mas sim poetas, e cada um dá à poesia o uso que acha melhor.

LÓGOS: Nathalie Sarraute: “A poesia numa obra é o que faz aparecer o invisível.” Já algum crítico conseguiu evidenciar na sua obra o que pretendeu, deliberadamente, que permanecesse invisível numa primeira leitura? 

A.M.PIRES CABRAL: Essa definição lembra-me muito uma que li em António Cabral: “A poesia é um brilho que fica das coisas quando elas já não estão nos olhos.” Mas respondendo à pergunta: se aconteceu, não dei por isso... (De resto, não desejo que nada fique por entender na minha poesia, pelo contrário, por isso escrevo escancaradamente.) O que tem acontecido algumas vezes é que os críticos descobrem coisas que não me passaram pela cabeça ao escrever aqueles poemas. É como se eles tivessem a chave do nosso subconsciente. É essa a função deles, críticos: obrigar a poesia a dar o que tem e o que (julgamos que) não tem. E isso, não tenho dúvidas, enriquece a poesia.

LÓGOS: “A poesia não é uma questão de sentimentos, é uma questão de linguagem. É linguagem que cria sentimentos” (Umberto Eco). Considera que a verdadeira poesia é uma arte cheia de regras e técnicas e que procura ter uma boa relação com os sentimentos?

A.M.PIRES CABRAL: Tenho dificuldade em apreciar uma poesia que não traga sentimentos dentro: poesia asséptica, neutra, descomprometida com o homem. Porém a poesia não tem que ser espartilhada por regras, nem mesmo pelas regras do bom senso, nem sequer pelas do bom gosto. Mas se há poetas que se querem impor normas e disciplina, estão no seu direito; pode mesmo acontecer que uma tal poesia seja tão estimável como a mais rebelde das poesias. Falemos claro: a poesia é uma espécie de manta espanhola que tudo pode cobrir.

LÓGOS: O que pensa da descaracterização da poesia que impera no tempo actual?

A.M.PIRES CABRAL: Há uma cacofonia ambiente, consequência da proliferação de poetas (?), que é certamente prejudicial à imagem da poesia que acarinhamos e gostaríamos de fazer passar. Alguém diga a essas dezenas de poetastros que (sem prejuízo do seu direito a poetar e a fazer-se ouvir) abster-se de escrever poesia não é propriamente desgraça nenhuma: há sempre outras coisas igualmente estimáveis e porventura mais úteis que se podem fazer em alternativa a debitar versos. Eu, pelo sim pelo não, tenho diversos sucedâneos para a poesia, de que posso lançar mão — se e quando me resolver a meter a viola no saco. 

Obra poética:

Estreou-se em 1974 com Algures a Nordeste (Catálogo de feios, simples e humildes). Publicou em seguida Solo Arável (FAOJ, 1976); Trirreme (Centelha, 1978); Boleto em Constantim (O Oiro do Dia, 1981); Sabei por onde a luz (CRTSM, 1983); Artes Marginais (Guimarães Editores, 1998); Desta Água Beberei (1999); O Livro dos Lugares e Outros Poemas (João Azevedo Editor 2000); Como se Bosch Tivesse Enlouquecido (João Azevedo Editor, 2003); Douro: Pizzicato e Chula (Cotovia, 2004); Que Comboio É Este (Teatro de Vila Real, 2005) (Prémio D. Dinis 2006, juntamente com Douro: Pizzicato e Chula); Antes que o Rio Seque. Poesia reunida. (Assírio & Alvim, 2006); As Têmporas da Cinza (Cotovia, 2008) (Prémio de Poesia “Luís Miguel Nava” 2009); Arado (Cotovia, 2009) (Prémio PEN Club de Poesia 2009); Cobra-d’Água (Cotovia, 2011); Gaveta do Fundo (Tinta-da-china, 2013) (Prémio Autores SPA 2014 – Melhor Livro de Poesia); A Noite em que a Noite Ardeu (Cotovia, 2015).
Traduções: Irgendwo im Nordosten / Algures a Nordeste – Antologia bilingue português / alemão (Edition Con, 1983); En algún lugar al Nordeste (Catálogo de feos, sencillos e humildes) – Tradução castelhana de Algures a Nordeste. (Celya, 2010); Le illeggibili pagine dell’acqua. – Antologia bilingue português / italiano (Bibliopolis, 2011).

https://www.facebook.com/antoniomanuel.pirescabral?fref=nf

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