Eu penso que o riso acabou – porque a humanidade entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização. (…) O homem de acção e pensamento, hoje, está implacavelmente votado à melancolia.
Eça
de Queirós (1845-1900),
in Notas Contemporâneas (1909, obra póstuma)
"Melancolia", Edvard Munch, 1892 |
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ERA
UMA VEZ
um homem, dono de todo o universo. Nas manhãs de cada um dos dias, o homem contemplava o seu pequeno-grande mundo, até a lua chegar, tentando encontrar um ritmo de vida, uma pulsão, um sentido. O tempo passou. Os cabelos e as barbas do homem cobriram o seu corpo, deram a volta ao mundo e embranqueceram. Depois de muitos sóis e de muitas luas, o homem sentiu-se cansado, mas não havia chão onde se deitar. Então, deixou-se ficar de pé, naquele lugar pensante que era apenas responsabilidade sua. Os braços e as pernas, alinhados com o corpo, faziam agora parte de uma estrutura mental focada num único pensamento. Um lugar-corpo entranhado por uma memória obsessiva. “Sou um homem. Penso. Estou de pé e não há vento que me derrube”. O corpo secou e toda a matéria se fundiu numa substância hirta e luzidia, de cor indefinida. O vento, que sempre morou por ali, também não desistiu de lutar pelo seu sentido, o sopro da terra. Fez esvoaçar continuamente a claridade dos cabelos e das barbas do homem, que eram vistos de dia e de noite, como se a eternidade fosse apenas isso. Um homem fiel a si próprio. Um ser racional criador de ideais. Um homem vivo transformado numa bandeira, a primeira de toda a humanidade, a esvoaçar na utopia.
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A
MELANCOLIA
nasceu
com os primeiros homens. Que difícil era, para eles, encontrar alegria na
escuridão. Desde o século V a.C. que as pessoas temiam o sinistro humor,
chamando-lhe bílis negra. Na Grécia clássica Hipócrates acreditava que o corpo
era composto por quatro humores – cólera, fleuma, sangue, melancolia – os quais
ditavam as disposições e justificavam o carácter psicológico e social de cada
ser humano. A cólera implicava um indivíduo irascível; a fleuma tornava-o
tranquilo; o sangue dava-lhe vigor; a pessoa taciturna padecia de um excesso de
bílis negra e estaria condenada a sofrer consequências nefastas. Galeno, um
médico hipocrático da antiguidade disse que os melancólicos «odeiam todas as
pessoas que vêem, estão sempre carrancudos e parecem aterrorizados, como
crianças ou adultos sem instrução nas trevas mais profundas».
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A
TRADIÇÃO
disseminada
à volta de um conceito de melancolia negativa continua a surgir ao longo da
Idade Média, facilitando uma panóplia de pecados, como a luxúria, a preguiça, a
avareza e a ganância, observados em comportamentos de possessão demoníaca e
desespero blasfemo. Existem muitas evidências relacionadas com a forma como os
médicos da Antiguidade e da Idade Média tratavam a melancolia recorrendo a
curas mais ou menos dolorosas, mas quase sempre humilhantes: sangrias, purgas,
banhos quentes, exercício físico rigoroso, sessões de hipnotismo. No século XX,
os médicos passaram a receitar ópio e láudano para vergar os espíritos
angustiados, que se tornaram dramaticamente dependentes das misérias curativas:
mentes embrutecidas e corpos danificados, portanto. E, assim, a predisposição
para a melancolia adequava-se perfeitamente ao estado de espírito filosófico e
até ao brilhantismo intelectual que acompanhavam as personalidades geniais de
todas as épocas. Seria a melancolia uma condição da genialidade?
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MAS
voltemos
atrás. Ficino consultou uma obra antiga com o título Problemas, que se
pensa ter sido escrita pelo próprio Aristóteles e onde se inclui a seguinte
passagem: «Porque será que todos os que alcançaram a eminência na filosofia ou
na política ou na poesia ou nas artes são claramente melancólicos?» Seria a
melancolia, afinal, uma virtude? um sinal de graça intelectual? Uma não-doença?
Em 1489, Ficino começa a escrever O Livro da Vida, um poderoso tratado sobre a
relação integral entre a melancolia e a meditação, argumentando a seguinte
ideia revolucionária: a tristeza pode ser um catalisador de um tipo especial de
génio capaz de explorar as fronteiras mais obscuras do espírito, como por
exemplo, as almas filosóficas que conseguem mover-se entre opostos. Estes seres
especiais pairam sobre o limbo do invisível eterno e o visível controlado pelo
tempo. Para eles, não há meio-termo.
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QUAL
É
a
obra interminável da vida melancólica? Se aceitarmos que as pessoas que querem
ser felizes a todo o custo e aquelas que tendem para a tristeza em qualquer
circunstância não são assim tão diferentes umas das outras, é fácil perceber
que estes dois tipos têm receio da fina e frágil película do meio-termo. Não
conseguem admitir a angústia das sombras e buscam incessantemente a pálida
claridade da lucidez. Se os felizes vão numa direcção, os infelizes vão noutra.
São como amantes secretos, criando-se e recriando-se num processo dialéctico.
Uns não sobrevivem sem os outros e todos pretendem a paz profunda, a
tranquilidade interior e verdadeira, a tolerância face ao princípio fundamental
da vida: precisamos dos dois lados do mundo. E se a melancolia persistente
revela uma certa alegria na descoberta da tristeza, por fim, desvendada, é
possível vivermos no meio-termo, conciliando a alegria e a tristeza através de
uma responsabilidade criativa para imaginar relações misteriosas entre opostos.
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A
IRONIA
desta
tese pode conduzir-nos a uma outra teoria talvez mais perigosa: a melancolia
ajuda-nos a confiar num mundo que é, sem dúvida, instável e povoado de
mentirosos, mantêm-nos honestos.
Adília César,
in https://issuu.com/danielpin.../docs/algarve_informativo__287