O Povo completo será aquele que tiver reunido
no seu máximo todas as qualidades e todos os defeitos. Coragem portugueses, só
vos faltam as qualidades.
Almada Negreiros
Portugal é um pequenino canto da Europa,
encantador, crédulo. E também fanfarrão, irresponsável, exasperante. Além do
clima ameno e da boa gastronomia, pouco mais há a dizer de positivo, apesar de
toda a benevolência compassiva que ainda consigo escavar bem no fundo de mim
mesma. Afinal de contas, sou portuguesa e sirvo os outros na minha actividade
profissional há mais de 30 anos.
Desenho de Matilde B., 4 anos de idade |
É nas situações de crise, como a
conjuntura actual provocada pela pandemia do Covid 19, que me apercebo melhor do
estado em que se encontra o meu país. Faz sentido relembrar as palavras do
filósofo José Gil (Moçambique, 15 de junho de 1939), considerado pelo semanário
francês Nouvel Observateur como um dos "25 grandes pensadores do
mundo", que em 2004 publicou o livro "Portugal-Hoje, O Medo de
Existir", no qual pretendia realizar uma radiografia ao "carácter
português". A maior lição a retirar desta pequena obra prima da filosofia
é o conceito da “não-inscrição”, a par da existência de um processo de controlo
social sobre a população portuguesa por parte das classes dominantes nos
diversos quadrantes da sociedade – político, cultural, artístico – através da
apresentação de sucessivos disfarces para a Democracia, uma palavra já tão
gasta e incompreendida que se confunde facilmente com demagogia, inércia,
corrupção e pessimismo. Esta “democracia” doente tem-se propagado como um vírus
e vem consignando este fragilizado Portugal como o país da não-inscrição:
Em Portugal nada acontece, «não há drama, tudo é intriga e trama», escreveu alguém num graffiti ao longo da parede de uma escadaria de Santa Catarina que desce para o elevador da Bica. Nada acontece, quer dizer, nada se inscreve - na história ou na existência individual, na vida social ou no plano artístico. Talvez por isso os estudos mais sólidos e com maior tradição em Portugal sejam os que se referem ao passado histórico, numa vontade desesperada de inscrever, de registar para dar consistência ao que tende incessantemente a desvanecer-se (e que, de direito, se inscreveu já, de toda a maneira - mas onde?). Curiosamente, aquele graffiti tentava inscrever a impossibilidade de inscrever...(...) Se, num certo sentido, se disse até há pouco (hoje diz-se menos) que «nada mudou» apesar das liberdades conquistadas, é porque muito se herdou e se mantém das antigas inércias e mentalidades da época da ditadura: desde o medo, que sobrevive com outras formas, à irresponsabilidade que predomina ainda nos comportamentos dos portugueses. (pp.15-17)
Relógio d'Água, 2004 |
Nestas circunstâncias de insegurança, há
uma correlação directa de causa-efeito nas acções dos cidadãos. Como se
manifesta a intervenção cívica perante uma crise de saúde pública que esbarra
com comportamentos irresponsáveis de uma geração jovem sobre a qual os mais
velhos depositam a sua esperança num mundo mais justo? No dia em que a Organização Mundial de Saúde declarou o
estado de Pandemia de Coronavírus, fazia-se sentir um belo dia de sol em
Portugal, e o bom tempo levou muitos jovens estudantes com aulas suspensas às
praias da linha de Cascais, indiferentes à situação de pandemia, pondo em risco
a sua saúde e a saúde dos outros. Qual o valor da consciência democrática?
Na minha
actividade profissional, sirvo os outros numa escola. Não estou em pânico com o
Covid 19. Os nossos governantes tentam convencer a população portuguesa: dizem
ter as melhores intenções e que estão plenamente dotados de competências
estratégicas para conseguirem resolver com "serenidade, calma e bom
senso" o que aí vem. Pura demagogia, pois não se vê qualquer acção
preventiva digna de nota no que diz respeito a um sector público da maior
importância: creches, infantários, jardins de infância, estabelecimentos de
educação e de ensino. Na minha escola, toda a
comunidade educativa está apreensiva com as decisões tomadas pelas pessoas que,
supostamente, sabem o que estão a fazer para nos proteger. Sabem mesmo?! A
desconfiança instalou-se e veio para ficar. Mas não, não estou em pânico. As
crianças que me acompanham dia a dia também não. Temos a linha da Saúde 24 para
pedir ajuda e o Plano de Contingência da nossa escola para consultar. Não temos
mais nada, mas não estamos em pânico. Temos serenidade, calma e bom senso, como
nos pediram. E vamos todos os dias para a escola, até ao dia em que passaremos
a fazer parte de uma qualquer estatística.
Adília César