Afinal
antigamente não havia palavra para azul,/ cor a que os olhos ainda não se tinham
habituado:/ o céu era de um tom indistinguível,/ o mar vinho escuro. (…) Pois
só damos nomes às coisas que encontramos/ e sentimos ao rés da realidade/ como
a ave excêntrica que nos bica os calcanhares.
Catarina Costa, in CHIAROSCURO
"O Naufrágio" de J. M. W. Turner (1775-1851) |
A história das cores deve ser uma história
social das cores, uma vez que é a sociedade de cada época que faz a cor,
que a define e lhe dá sentido – o espectáculo do azul na natureza, o modo como
a biologia do ser humano percepciona o azul, mas, sobretudo, práticas, códigos,
sistemas, mutações, desaparecimentos, inovações e fusões que afectam todos os
aspectos da cor azul historicamente observáveis, ou seja, todas as implicações sociais
do azul. Ah, o imenso céu (azul?) num claro dia de uma qualquer amena
estação do ano… Sendo um fenómeno natural, é também uma construção cultural
complexa e ainda se assume como raridade do ponto de vista dos historiadores,
enquanto “objecto histórico de pleno direito” – diz-nos Marcel Pastoureau.
Existem várias razões para o fenómeno, que se prendem com dificuldades
documentais, metodológicas e epistemológicas.
Estamos perante um terreno transdocumental
e transdisciplinar, ou melhor, estamos perante um problema de definição: se
pesquisarmos textos antigos como a Odisseia, a Bíblia, o Alcorão, as sagas
islandesas, conseguimos encontrar amplas descrições do céu e do mar, que nunca
referem, no entanto, o termo azul propriamente dito, utilizando em seu
lugar o cor-de-vinho, o vermelho, o preto, o branco, o verde… mas nunca o azul,
que parece ter sido a última cor a aparecer em todas as línguas conhecidas. A
cor azul do céu e do mar foi alvo de desinteresse e desconfiança, do Neolítico
até à Baixa Idade Média. E na Roma Antiga, ter olhos azuis era uma espécie de
deficiência física… O excerto do poema de Catarina Costa em epígrafe abre a perplexidade
– a palavra azul não existia porque não havia a correspondência com
objectos concretos, definidos e visíveis?
YInMn, o novo tom de azul |
Presentemente, o azul é a cor preferida de
cerca de 45% de pessoas do mundo inteiro, com 111 tons diferentes nomeados,
sendo que um desses tons – o novíssimo YlmNm Blue – foi criado em laboratório, acidentalmente,
em 2016. Todos os tons de azul são frios e estão associados a diferentes
estados emocionais e/ou espirituais: frieza, paz, depressão, ordem, monotonia,
harmonia, melancolia, tranquilidade, tristeza, paciência, amabilidade,
confiança. E também é uma cor ligada à ciência e tecnologia, inteligência,
liberdade e progresso. Não será por acaso que as redes sociais Facebook,
Twitter, Tumblr, Instagram, Linked in têm a cor
azul no seu logo ou nas suas interfaces, assim como as marcas IBM,
HP, Intel. Inconscientemente, a cor está ligada a tecnologia,
alivia o stress e significa inteligência, liberdade e progresso; o hyperlink
também tem uma explicação simples para a origem da sua cor: nas primeiras telas
de computador, o azul era a cor mais escura depois do preto e uma vez
consolidada esta tendência, a web também aderiu. Talvez este gosto tão
enraizado pelo azul na internet seja a primeira evidência de um consciente
colectivo virtual.
Pantone, o sistema de
cores mundialmente conhecido e largamente utilizado na indústria gráfica desde
a década de 60, anunciou a Cor do Ano para 2020 – Classic Blue, um favorito
universal, atemporal e clássico. Diz-nos Leatrice Eiseman, directora executiva
do Pantone Color Institute: “Um azul evocativo sem limites do vasto e
infinito céu noturno, o Pantone 19-4052 Classic Blue encoraja-nos a olhar além
do óbvio para expandir o nosso pensamento; desafiando-nos a pensar mais
profundamente, aumentar nossa perspectiva e abrir o fluxo de comunicação”.
Inúmeros significados atribuídos aos
diferentes tons da mesma cor-luz dignificam uma ampla criatividade ligada às
artes. Alguns nomes de tonalidades azuis, como por exemplo, azul-pacífico
(tom de lavanda) e azul-eterno (azul intenso), correspondentes a duas
espécies de rosas que ostentam pétalas nesses tons, remetem-nos para uma profusa
variedade de textos criativos experimentados por poetas. Eis uma intenção de
poema:
DE TÃO AZUL
Os dedos das rosas muito compridos e
unidos, como membranas de asas ou barbatanas de peixes. Em ousadia de voo, as
rosas caem de uma altura onde o céu está parado da cor azul-pacífico que veio
do futuro da inteligência. Mergulha abruptamente nas ondas do mar, esse
azul-eterno que veio do passado do esquecimento. Chamam as rosas a cor que lhes
pertence, em vão. Rasgam-se as pétalas com os espinhos desse chamamento. Mas há
uma rosa que ainda é azul-espanto, respira azul, canta azul. De tão azul, é uma
rosa que sangra e o sangue vermelho dela em céu azul se transforma. Rosa pacífica
e eterna, a fazer-se bandeira da humanidade esclarecida. De tão azul, essa paz
dos teus olhos nos meus.
Adília César, Janeiro de 2020
https://issuu.com/danielpina1…/docs/algarve_informativo__232."Azul" de O. Olijov, para ouvir: https://youtu.be/RgCA8zTeFOQ